«O Combate»
Conto de Josué Montello
997- «O COMBATE»
Na véspera do combate, quando a lua despontou por cima dos contrafortes da
serra do Medeiro, já encontrou as tropas do Capitão Nelson de Melo a poucos
quilómetros do lugar escolhido para o duplo movimento - de vanguarda e
retaguarda - contra as forças governistas. O batalhão marchava em silêncio,
cobrindo a picada no passo certo da marcha, de baterias prontas para a
ofensiva, enquanto a cavalaria se alongava em fila indiana, com os animais de
orelhas fitas, rédeas soltas, batendo cadenciadamente os cascos nas pedras do
chão. Adiante, nas carretas vagarosas, seguiam dois canhões, ladeados por
quatro artilheiros.
Por volta das dez e meia, o batalhão parou para acampar. Dali se podia ver,
banhada pela claridade do luar, a silhueta compacta das montanhas fechando o
cenário da luta. Ocultos pela vegetação das encostas, já os canhões inimigos
espreitariam, alongando o pescoço comprido, prontos para atirar.
João Maurício, que dispensara a barraca de campanha, preferira ficar ao
relento, na companhia de seus soldados, sentindo à sua volta a noite imensa e
clara. Jamais tinha visto outra assim. Afeito a galgar escarpas e
desfiladeiros, vivia agora uma emoção diferente, com aquela luz húmida, aquele
silêncio espaçoso, aquelas cumeadas, aquelas árvores que a brisa balouçava. Por
terra, junto aos fuzis e às mochilas, jaziam os companheiros adormecidos,
agasalhados nas mantas e nos capotes, sem que se lhes ouvisse o ressonar
sobressaltado. Parecia a João Maurício que, afora as sentinelas, que se
mantinham alerta nos postos avançados, somente ele permanecia vigilante, àquela
hora tardia, sentado no chão, com as mãos frias escorando o corpo, que se
reclinava para trás. Apesar da marcha longa, não sentia sono nem cansaço.
Aquela vigília não seria um aviso de que seu fim se aproximava? Entregava-se às
mãos de Deus, convicto de que tomara o partido da boa causa. E alongava para os
alcantis a vista insone. A noite, olhada daquela iminência, com as montanhas
empinadas sob a luz alvacenta, tinha a imponência inaugural do mundo primitivo,
como se Deus houvesse acabado de fazer tudo aquilo. Aqui, além, esguios
pinheiros imóveis, perfilados no sopé das encostas, abriam-se no alto, como em
gesto de oferenda. Com o passar das horas, a luz adquiria gradações novas. A
própria lua, suspensa sobre a crista da serra, dava a impressão de buscar alguma
coisa na claridade fosca, com um ar de notívaga assustada.
Nisto João Maurício percebeu que um vulto se movia ao seu lado, firmando as
mãos no solo para erguer a cabeça, e logo reconheceu o Cabo Ruas, que por fim
se sentou, esticando os braços curtos:
— Não quis dormir, Tenente? Eu passei pelo sono. Em noites assim, durmo e
acordo, durmo e acordo. Tomara que esta briga acabe depressa. Já estou sentindo
a falta de casa. Vou brigar ainda um mês ou dois, depois pego licença: já está
em tempo de ver minhas crianças. Agora mesmo sonhei com a patroa. Ela fazia um
festão com a minha chegada.
E após um silêncio longo, olhando a noite erma:
— Isto aqui mete medo. Aquela montanha ali, muito escura, muito alta, parece
que está de dedo empinado, ralhando com a gente. E olhe o vento assobiando.
Deus não pode ter inventado a guerra, Tenente. Isto é coisa do Diabo. Eu, aqui,
com o meu fuzil, e o senhor, aí, com a sua pistola, só estamos pensando em
matar para não ser morto. Deus disse: "Não matarás." E nós, aqui, não
fazemos outra coisa. Acho que foi esse pensamento que me tirou o sono. Estou
dizendo besteira, Tenente? João Maurício bateu-lhe no ombro:
— Não. Mas trata de dormir. Precisas estar descansado, e eu também. Fica
quieto.
E alongou-se ao comprido do chão, com o rosto voltado para o céu, como em busca
das estrelas, enquanto o Cabo Ruas se deitava de borco com a cabeça no braço
dobrado. Mas, mesmo quieto, João Maurício não dormiu. Para os lados de
Belarmino, voltavam a retumbar tiros isolados, que as montanhas repetiam.
— Boa-noite, Tenente.
— Boa-noite, Ruas.
E João Maurício, com as mãos sob a nuca, ia vendo farrapos de nuvens que o
vento levava. Quando a luz da aurora se espalhasse por aquelas alturas, haveria
sangue no horizonte, por cima das árvores, e sangue na terra, com os primeiros
mortos e feridos. Os cavalos se precipitariam sobre o verde dos desfiladeiros,
e muitos deles relinchariam, ouvindo o toque das cornetas, por entre o rugir
dos canhões, o sibilar das balas, e o estrugir nervoso da metralha. E tanto de
um lado quanto de outro, os corpos iriam tombando, à proporção que o dia fosse
crescendo.
Sem perceber a transição da vigília para o sono, João Maurício deixou cair
pesadamente as pálpebras, e só voltou a si com o Ruas a lhe sacudir o braço:
— Depressa, Tenente: o ataque está começando.
De um salto, ele ficou de pé, ouvindo em redor o alvoroço dos companheiros que
se apresentavam para o combate. Na manhã ainda clareando, estrondavam as
primeiras cargas cerradas do bombardeio inimigo. Soavam longe os clarins e as
cornetas. Alguns cavalos galopavam, outros relinchavam com o repuxo das rédeas
e o toque das esporas. E as granadas não tardaram a explodir ali no alto,
arrancando touceiras de mato e salpicos de terra revolvida. De vez em quando, um
grito. E os canhões rugiam dos dois lados, escancarando na luz atônita o clarão
instantâneo das balas detonadas.
Após a desordem assustada dos momentos iniciais de luta, uma ordem natural
ia-se impondo — com os soldados nas posições de combate, a resposta rápida dos
tiros, o corpo-a-corpo que lá adiante se travava, a arremetida dos
cavalarianos, os grupos que se infiltravam pelos capões de mato e pelo aclive
das ribanceiras. A cada instante, uma nova ordem da corneta. Novas cargas
cerradas. As granadas de mão que se amiudavam, e já um ou outro soldado inimigo
tentava infiltrar-se nas linhas rebeldes, enquanto a luz da manhã crescia e se
alastrava.
Josué Montello
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