sábado, 18 de março de 2017

OUTROS CONTOS

«Devia Morrer-se de Outra Maneira», por José Gomes Ferreira.

«Devia Morrer-se de Outra Maneira»
Metamorfoses/ Vladimir Kush

998- «DEVIA MORRER-SE DE OUTRA MANEIRA»

Devia morrer-se de outra maneira.
Transformando-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.

Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos os amigos mais íntimos com um cartão de convite para o ritual do Grande Desfazer: “Fulano de tal comunica ao mundo que vai transformar-se em nuvem hoje, às 9 horas. Traje de passeio.”

E, então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos escuros, olhos de lua de cerimónia, viríamos todos assistir à despedida. Apertos de mãos quentes, ternura de calafrio. “Adeus!  Adeus!” E pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento, numa lassidão de arrancar raízes... (primeiro, os olhos… em seguida, os lábios... depois o cabelo...) a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se em fumo... tão leve... tão subtil.... tão pólen... como aquela nuvem além (vêm?) - nesta tarde de Outono ainda tocada por um vento de lábios azuis...

José Gomes Ferreira

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