«Último Natal Descrente», por João de Melo.
«Último Natal Descrente»
Ilustração: Afonso Cruz
1004- «ÚLTIMO NATAL DESCRENTE»
Os crentes e confessos de verdade são quase sempre
pessoas sumamente perigosas. Acreditam em tudo e mais alguma coisa: nas
estações do ano, no novo acordo ortográfico, na Europa unida e até no ministro
Paulo Portas. Foram elas, sem margem para dúvidas, que mandaram colocar em
todos os mupis de Lisboa um anúncio a uma revista mais ou menos pornográfica
(de cujo nome não quero recordar-me) com uma frase irónica, escrita em letra
maiúscula: «Eu acredito no Pai Natal». Tanto quanto me recordo,
trata-se de um senhor de provecta idade, muito barbado de branco, um tanto
barrigudo e com um saco cheio de cães e gatos a pender do ombro. Alegre,
bonacheirão, um pouco apalermado -porque só pode ser de um palerma aturar tanta
criançada, tanta neve, tanto trenó vindo da Lapónia e manter, ainda assim, toda
aquela bonomia de santo presenteiro.
Não sei quem a disse, mas nunca mais esqueci uma frase justa
e lapidar, que vai bem com esta moral de Dezembro e com o meu espírito
natalício: "Os ricos têm todas as razões para acreditar em Deus. Os pobres
limitam-se a crer no papa". Certamente um filósofo. Alemão ou holandês:
têm sempre nomes muito difíceis de fixar.
Tudo em nós sobe da infância para a idade, numa ascensão do
sonho para o desencanto da verdade e da vida. Lembro-me da primeira prenda de
Natal que me deram: um pacotinho de alfarrobas vindas de fora (não existiam nos
Açores). Umas vagens quase doces, de uma cor quaresmal imprópria para a época.
Não gostei dessa partida do Menino Jesus, e nunca mais voltei a pôr o sapato na
chaminé.
Deixei de crer, cortei relações com ele. Mas isso não obstou
a que, muitos e muitos anos mais tarde, eu lhe tivesse dedicado um breve conto
autobiográfio, Ouro, Incenso e Mirra, escrito a pedido.
Foi lido na televisão e comoveu os olhos da minha mulher até
às lágrimas. Um texto pungente de poesia e dos seus contrários; desprovido da
fé e dos dogmas da catequese, mas tocado pela espiritualidade do maravilhoso
cristão, tal qual o concebemos no Ocidente.
O problema é que, não sendo eu nem pobre nem rico, aquela
frase acerca de Deus e do papa não me assenta bem nem com inteira justeza
literária. E agora o tempo, o folgado e rijo e impiedoso tempo, corre contra
mim. Estou para ser avô de uma menina a quem, um dia, espero vir a contar
histórias de Natal que enformem em si o universo do mundo familiar. Esse é
desde já um sarilho ou um desafio para mim, e não pequeno, porque é suposto um
avô transmitir crenças e histórias com final feliz a uma netinha imanentemente
amada que virá em breve ao mundo para me salvar da dor e dos amargores do
cepticismo.
Este é, por conseguinte, o último Natal em que não creio (ou
não creio nele em sintonia com muitas outras pessoas). No ano que vem, sim,
conto estar de regresso e reconvertido ao presépio, à consoada e à obra de caridade
dos presentes (mesmo sem subsídio de Natal, graças ao Sr. Gaspar -não o rei
Mago, mas aquele lambido das Finanças). Dito o que, venho pedir licença de
passagem para o meu último soneto de ateu -à conta das tais alfarrobas, de Deus
e de todos os papas e doutores da Igreja.
Prometo desde já ter mais juízo e ser decente para o ano que
vem -não vá pensar-se que serei um avô degenerado ou que a minha futura netinha
não foi suficientemente desejada também pela fé da família!
João de Melo
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