«O Afogado mais Bonito do Mundo»
Mulher encontrada afogada/ Vasily Perov
993- «O AFOGADO MAIS BONITO DO MUNDO»
Os primeiros meninos que viram o volume escuro e silencioso
que se aproximava pelo mar imaginaram que era um barco inimigo. Depois viram
que não trazia bandeiras, nem mastreação, e pensaram que fosse uma baleia.
Quando, porém, encalhou na praia, tiraram-lhe os matos de sargaço, os
filamentos de medusas e os restos de cardumes e naufrágios que trazia por cima,
e só então descobriram que era um afogado.
Tinham brincado com ele toda a tarde, enterrando-o e o
desenterrando na areia, quando alguém os viu por acaso e deu o alarme no
povoado. Os homens que o carregaram à casa mais próxima notaram que pesava mais
que todos os mortos conhecidos, quase tanto quanto um cavalo, e se disseram que
talvez tivesse estado muito tempo à deriva e a água penetrara-lhe nos ossos.
Quando o estenderam no chão viram que fora muito maior que todos os homens,
pois mal cabia na casa, mas pensaram que talvez a capacidade de continuar
crescendo depois da morte estava na natureza de certos afogados. Tinha o cheiro
do mar e só a forma permitia supor que fosse o cadáver de um ser humano, porque
sua pele estava revestida de uma couraça de rêmora e de lodo.
Não tiveram que limpar seu rosto para saber que era um morto
muito estranho. O povoado tinha apenas umas vinte casas de tábuas, com pátios
de pedra, sem flores dispersas, no fim de um cabo desértico. A terra era tão
escassa que as mães andavam sempre com medo de que o vento levasse os meninos,
e os poucos mortos que os anos iam causando tinham que atirar das escarpas. Mas
o mar era manso e pródigo, e todos os homens cabiam em sete botes. Assim,
quando encontraram o afogado, bastou-lhes olhar uns aos outros para perceber
que nenhum faltava.
Naquela noite não foram trabalhar no mar. Enquanto os homens
verificaram se não faltava ninguém nos povoados vizinhos, as mulheres ficaram
cuidando do afogado. Tiraram-lhe o Iodo com escovas de esparto,
desembaraçaram-lhe os cabelos dos abrolhos submarinos e rasparam a rêmora com
ferros de descamar peixes. À medida que o faziam, notaram que a vegetação era
de oceanos remotos e de águas profundas; e que suas roupas estavam em
frangalhos, como se houvesse navegado por entre labirintos de corais. Notaram
também que carregava a morte com altivez, pois não tinha o semblante solitário
dos outros afogados do mar, nem tampouco a catadura sórdida e indigente dos
afogados dos rios. Somente, porém, quando acabaram de limpá-lo tiveram
consciência da classe de homem que era, e então ficaram sem respiração. Não só
era o mais alto, o mais forte, o mais viril e o mais bem servido que jamais
tinham visto, senão que, embora o estivessem vendo, não lhes cabia na
imaginação.
Não encontraram no povoado uma cama bastante grande para
estendê-lo, nem uma mesa bastante sólida para velá-lo. Não lhe serviram as
calças de festa dos homens mais altos, nem as camisas de domingo dos mais
corpulentos, nem os sapatos do maior tamanho. Fascinadas por sua desproporção e
sua beleza, as mulheres decidiram então lhe fazer umas calças com um bom pedaço
de vela carangueja e uma camisa de cretone de noiva, para que pudesse
continuar sua morte com dignidade. Enquanto costuravam, sentadas em círculo,
contemplando o cadáver entre ponto e ponto, parecia-lhes que o vento não fora
nunca tão tenaz, nem o Caribe estivera tão ansioso como naquela noite, e supunham
que essas mudanças tinham algo a ver com o morto. Pensavam que se aquele homem
magnífico tivesse vivido no povoado, sua casa teria as portas mais largas, o
tecto mais alto e o piso mais firme, e o estrado de sua cama seria de cavernas
mestras com pernas de ferro, e sua mulher seria a mais feliz. Pensavam que
tivera tanta autoridade que poderia tirar os peixes do mar só os chamando por
seus nomes, e pusera tanto empenho no trabalho que fizera brotar mananciais entre
as pedras mais áridas, e semear flores nas escarpas. Compararam-no, em segredo,
com seus homens, pensando que não seriam capazes de fazer, em toda uma vida, o
que aquele era capaz de fazer numa noite, e acabaram por repudiá-los, no fundo
dos seus corações, como os seres mais fracos e mesquinhos da terra. Andavam
perdidas por esses labirintos de fantasia, quando a mais velha das mulheres,
que por ser a mais velha contemplara o afogado com menos paixão que compaixão,
suspirou:
– Tem cara de se chamar Estevão.
Era verdade. À maioria bastou olhá-lo outra vez para
compreender que não podia ter outro nome. As mais teimosas, que eram as mais
jovens, mantiveram-se com a ilusão de que, ao vesti-lo, estendido entre flores
e com uns sapatos de verniz, pudesse chamar-se Lautaro. Mas foi uma ilusão vã.
O lençol ficou curto, as calças, mal cortadas e pior costuradas, ficaram apertadas
e as forças ocultas de seu coração faziam saltar os botões da camisa. Depois da
meia-noite diminuíram os assobios do vento e o mar caiu na sonolência da quarta-feira.
O silêncio pôs fim às últimas dúvidas: era Estevão. As mulheres que o vestiram,
as que o pentearam, as que lhe cortaram as unhas e barbearam não puderam
reprimir um estremecimento de compaixão quando tiveram de resignar-se a
deixá-lo estendido no chão. Foi então quando compreenderam quanto devia ter
sido infeliz com aquele corpo descomunal, se até depois de morto o estorvava.
Viram-no condenado em vida a passar de lado pelas portas, a ferir-se nos tectos,
a permanecer de pé nas visitas, sem saber o que fazer com suas ternas e rosadas
mãos de boi marinho, enquanto a dona da casa procurava a cadeira mais resistente
e suplicava-lhe, morta de medo, sente-se aqui Estevão, faça-me o favor, e ele
encostado nas paredes, sorrindo, não se preocupe senhora, estou bem assim, com
os calcanhares em carne viva e as costas abrasadas de tanto repetir o mesmo,
em todas as visitas, não se preocupe senhora, estou bem assim, só para não
passar pela vergonha de destruir a cadeira, e talvez sem ter sabido nunca que aqueles
que lhe diziam não se vá, Estevão, espere pelo menos até que aqueça o café,
eram os mesmos que, depois, sussurravam lá se foi o bobo grande, que bom, já se
foi o bobo bonito. Isto pensavam as mulheres diante do cadáver um pouco antes
do amanhecer. Mais tarde, quando lhe cobriram o rosto com um lenço para que não
o maltratasse a luz, viram-no tão morto para sempre, tão indefeso, tão parecido
com os seus homens, que se abriram as primeiras gretas de lágrimas nos seus
corações. Foi uma das mais jovens que começou a soluçar. As outras, consolando-se
entre si, passaram dos suspiros aos lamentos, e enquanto mais soluçavam, mais
vontade sentiam de chorar, porque o afogado estava se tornando cada vez mais
Estevão, até que o choraram tanto que ficou sendo o homem mais desvalido da
Terra, o mais manso e o mais serviçal, o pobre Estevão. Assim que, quando os
homens voltaram com a notícia de que o afogado também não era dos povoados
vizinhos, elas sentiram um vazio de júbilo entre as lágrimas.
– Bendito seja Deus – suspiraram: – é nosso!
Os homens acreditaram que aqueles exageros não eram mais que
frivolidades de mulher. Cansados das demoradas averiguações da noite, a única
coisa que queriam era descartar-se de uma vez do estorvo do intruso, antes que
acendesse o sol bravo daquele dia árido e sem vento. Improvisaram umas padiolas
com restos de traquetes e espichas, e as amarraram com carlingas de altura,
para que resistissem ao peso do corpo até as escarpas. Quiseram prender-lhe aos
tornozelos uma âncora de navio mercante para que ancorasse, sem tropeços, nos
mares mais profundos, onde os peixes são cegos e os búzios morrem de saudade,
de modo que as más correntes não o devolvessem à margem, como acontecera com
outros corpos. Porém, quanto mais se apressavam, mais coisas as mulheres
lembraram para perder tempo. Andavam como galinhas assustadas, bicando
amuletos do mar nas arcas, umas estorvando aqui porque queriam pôr no afogado,
os escapulários do bom vento, outras estorvando lá para abotoar-lhe uma pulseira
de orientação; e depois de tanto sai daí mulher, ponha-se onde não estorve,
olhe que quase me fez cair sobre o defunto, aos fígados dos homens subiram as
suspeitas e eles começaram a resmungar, para que tanta bugiganga de altar-mor
para um forasteiro, se por muitos cravos e caldeirinhas que levasse em cima os
tubarões iam mastigá-lo, mas elas continuavam ensacando suas relíquias de
quinquilharia, levando e trazendo, tropeçando, enquanto gastavam em suspiros o
que poupavam em lágrimas, tanto que os homens acabaram por se exaltar, desde
quando aqui semelhante alvoroço por um morto ao léu, um afogado de nada, um
presunto de merda. Uma das mulheres, mortificada por tanta insensibilidade,
tirou o lenço do rosto do cadáver e também os homens perderam a respiração.
Era Estevão. Não foi preciso repeti-lo para que o
reconhecessem. Se lhe tivessem chamado Sir Walter Raleigh, talvez,
até eles ter-se-iam impressionado com seu sotaque de gringo, com sua arara no
ombro, com seu arcabuz de matar canibais, mas Estevão só podia ser único no
mundo e ali estava atirado, como um peixe inútil, sem polainas, com umas calças
que não lhe cabiam e umas unhas cheias de barro, que só se podia cortar a
faca. Bastou que lhe tirassem o lenço do rosto para perceber que estava envergonhado,
de que não tinha a culpa de ser tão grande, nem tão pesado, nem tão bonito, e
se soubesse que isso ia acontecer, teria procurado um lugar mais discreto para
afogar-se, de verdade, me amarraria eu mesmo uma âncora de galeão no pescoço e
teria tropeçado como quem não quer nada nas escarpas, para não andar agora
estorvando com este morto de quarta-feira, como vocês chamam, para não molestar
ninguém com esta porcaria de presunto que nada tem a ver comigo. Havia tanta
verdade no seu modo de estar que até os homens mais desconfiados, os que
achavam amargas as longas noites do mar, temendo que suas mulheres se cansassem
de sonhar com eles para sonhar com os afogados, até esses, e outros mais
empedernidos, estremeceram até a medula com a sinceridade de Estevão
Foi por isso que lhe fizeram o funeral mais esplêndido que
se podia conceber para um afogado enjeitado. Algumas mulheres, que tinham ido
buscar flores nos povoados vizinhos, voltaram com outras que não acreditavam no
que lhes contavam, e estas foram buscar mais flores quando viram o morto, e
levaram mais e mais, até que houve tantas flores e tanta gente que mal se podia
caminhar. Na última hora, doeu-lhes devolvê-lo órfão às águas, e lhe deram um
pai e uma mãe dentre os melhores, e outros se fizeram seus irmãos, tios e
primos de tal forma que, através dele, todos os habitantes do povoado acabaram
por ser parentes entre si. Alguns marinheiros que ouviram o choro à distância
perderam a segurança do rumo, e se soube de um que se fez amarrar ao mastro
maior, recordando antigas fábulas de sereias. Enquanto se disputavam o
privilégio de levá-lo nos ombros, pelo declive íngreme das escarpas, homens e
mulheres perceberam, pela primeira vez, a desolação de suas ruas, a aridez de
seus pátios, a estreiteza de seus sonhos, diante do esplendor e da beleza do
seu afogado. Jogaram-no sem âncora, para que voltasse se quisesse, e quando o
quisesse, e todos prenderam a respiração durante a fração de séculos que
demorou a queda do corpo até o abismo. Não tiveram necessidade de olhar-se uns
aos outros para perceber que já não estavam todos, nem voltariam a estar
jamais. Mas também sabiam que seria diferente desde então, que suas casas
teriam as portas mais largas, os tetos mais altos, os pisos mais firmes, para
que a lembrança de Estevão pudesse andar por toda parte, sem bater nas traves,
e que ninguém se atrevesse a sussurrar no futuro já morreu o bobo grande, que
pena, já morreu o bobo bonito, porque eles iam pintar as fachadas de cores
alegres para eternizar a memória de Estevão, e iriam quebrar a espinha cavando
mananciais nas pedras e semeando flores nas escarpas para que, nas auroras dos
anos venturosos, os passageiros dos grandes navios despertassem sufocados por
um perfume de jardins em alto-mar, e o capitão tivesse que baixar do seu
castelo de proa, em uniforme de gala, astrolábio, estrela polar e sua enfiada
de medalhas de guerra, e, apontando o promontório de rosas no horizonte do
Caribe, dissesse em catorze línguas, olhem lá, onde o vento é agora tão manso
que dorme debaixo das camas, lá, onde o sol brilha tanto que os girassóis não
sabem para onde girar, sim, lá é o povoado de Estevão.
Gabriel García Márquez
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