segunda-feira, 31 de março de 2014

OUTROS CONTOS

«Minha Vida com a Onda», por Octavio Paz.

«Minha Vida com a Onda»
A Onda, pintura de Gustave Courbet

106- «MINHA VIDA COM A ONDA»

Quando deixei aquele mar, uma onda se adiantou entre todas. Era esbelta e ligeira. Apesar dos gritos das outras, que a seguravam pelo vestido flutuante, pendurou-se em meu braço e foi-se embora comigo pulando. Não quis dizer-lhe nada, porque me dava pena envergonhá-la diante das colegas. Além disso, os olhares de cólera das ondas maiores me paralisaram.

Quando chegamos à cidade, expliquei-lhe que não podia ser, que a vida ali não era o que ela pensava na sua ingenuidade de onda que nunca tinha saído do mar. Olhou para mim com seriedade: "Sua decisão estava tomada. Não podia voltar”. Tentei doçura, dureza, ironia. Ela chorou, gritou, acariciou, ameaçou. Tive que pedir-lhe perdão. No dia seguinte começaram meus problemas. Como subir no trem sem que nos vissem o condutor, os passageiros, a polícia? É verdade que os regulamentos não falam nada sobre o transporte de ondas nos trens, mas era justamente essa ressalva um indício da severidade com que se julgaria nossa atitude. 

Depois de pensar muito, cheguei à estação uma hora antes da partida, ocupei meu assento e, quando ninguém olhava, esvaziei o depósito de água para os passageiros; em seguida, cuidadosamente, verti nele minha amiga.

O primeiro incidente aconteceu quando as crianças de um casal vizinho declararam sua ruidosa sede. Adiantei-me para prometer-lhes refrescos e limonadas. Justamente no momento em que iam aceitar, aproximou-se outra sedenta. Quis convidá-la também, mas o olhar de seu acompanhante me conteve. A senhora pegou um copinho de papel, aproximou-se do depósito e abriu a torneira. Tinha apenas enchido metade do copo quando, de um salto, me interpus entre ela e minha amiga. A senhora olhou para mim com assombro. Enquanto pedia desculpas, um dos garotos voltou a abrir o depósito. Fechei-o com violência.

A senhora levou o copo aos lábios: 

— Ai, a água está salgada! — O menino fez eco. — Vários passageiros se levantaram. O marido chamou o condutor: 

— Este indivíduo jogou sal na água? — O condutor chamou o inspetor: 

— O senhor jogou substâncias na água? — O inspetor chamou o policial de plantão: 

— O senhor jogou veneno na água? — O policial de plantão chamou o capitão: 

— O senhor é o envenenador? — O capitão chamou três agentes. Os agentes me levaram para um vagão vazio, entre olhares e cochichos dos passageiros. Na primeira estação empurraram-me para fora do trem e arrastaram-me até a cadeia. Durante dias ninguém falou comigo, exceto durante os longos interrogatórios. Quando contava meu caso, ninguém acreditava, nem sequer o carcereiro, que mexia a cabeça, dizendo: "O assunto é grave, verdadeiramente grave. Não tinha tentado o senhor envenenar umas crianças?" Uma tarde, levaram-me ao procurador. 

— O assunto é difícil — repetiu. — Vou remetê-la ao juiz criminal. Assim passou-se um ano. Finalmente me julgaram. Como não houve vítimas, minha punição foi leve. Pouco tempo depois, chegou o dia de minha liberdade. O chefe da prisão me chamou: 

— Bom, já está livre. Teve sorte, graças a não terem acontecido desgraças. Mas que não volte a repetir-se, pois da próxima vez lhe custará caro... — E olhou para mim com a mesma expressão séria com que todos me olhavam.

Nessa mesma tarde peguei o trem e depois de algumas horas de incômoda viagem cheguei ao México. Peguei um táxi para minha casa. Ao chegar à porta do meu apartamento, ouvi risos e cantos. Senti uma dor no peito, como o golpe da onda da surpresa quando a surpresa nos golpeia em cheio no peito: minha amiga estava lá, cantando e rindo como sempre.

— Como você voltou?

— Muito fácil: no trem. Alguém, depois de certificar-se de que eu era apenas água salgada, me jogou na locomotiva. Foi uma viagem agitada: de repente era um tufo branco de vapor, de repente caía uma chuva fina sobre a máquina. Emagreci muito. Perdi muitas gotas.

Sua presença mudou minha vida. A casa de corredores escuros e móveis empoeirados se encheu de ar, de sol, de rumores e reflexos verdes e azuis, povoado de numerosos ecos e felizes reverberações.

Quantas ondas é uma onda ou como pode fazer praia ou rocha ou quebra-mar um muro, um peito, uma testa que coroa com espumas! Até os cantos abandonados, os abjetos cantos de poeira e os detritos foram tocados por suas mãos leves. Tudo começou a sorrir e por toda parte brilhavam dentes brancos, O sol entrava com gosto nos velhos quartos e ficava na casa por horas, quando já fazia muito tempo que havia abandonado as outras casas, o bairro, a cidade, o país. E várias noites, já bem tarde, as escandalizadas estrelas o viram sair de minha casa, escondido. O amor era um jogo, uma criação perpétua. Tudo era praia, areia, leito de lençóis sempre frescos. Se eu a abraçava, ela se erguia, incrivelmente esbelta, como talo líquido de um álamo; e de repente essa esbelteza florescia num jorro de penas brancas, num penacho de risos que caíam sobre minha cabeça e minhas costas e me cobriam de brancuras. Ou então estendia-se diante de mim, infinita como o horizonte, até que eu também me fazia horizonte e silêncio. Plena e sinuosa, envolvia-me como uma música ou uns lábios imensos. Sua presença era um ir-e-vir de carícias, de rumores, de beijos. Entrava em suas águas, quase me afogava e num fechar de olhos encontrava-me acima, no alto da vertigem, misteriosamente suspenso, para cair depois como uma pedra, e me sentir suavemente depositado no seco, como uma pena. Nada é comparável ao dormir embalado nas águas, a não ser acordar com os golpes de mil alegres chicotes ligeiros, por arremetidas que se retiram rindo.

Mas jamais cheguei ao centro de seu ser. Nunca toquei o nó do ai e da morte. Quiçá nas ondas não exista esse lugar secreto que faz a mulher vulnerável e mortal, esse pequeno botão elétrico onde tudo se enlaça, se crispa e se ergue, para logo desfalecer. Sua sensibilidade, como a das mulheres, se propagava em ondas, só que não eram ondas concêntricas, senão excêntricas, que se estendiam cada vez mais longe, até tocar outros astros. Amá-la era prolongar-se em contatos remotos, vibrar com estrelas distantes de que nem suspeitamos. Mas seu centro... não, não tinha centro, senão um vazio parecido com o dos torvelinhos, que me sugava e me asfixiava.

Estendidos um ao lado do outro, trocávamos confidências, cochichos, risadas. Feito um novelo, caía sobre meu peito e ali se desenrolava como uma vegetação de rumores. Cantava ao meu ouvido, caracol. Fazia-se humilde e transparente, jogada aos meus pés como um animalzinho, água mansa. Era tão límpida que podia ler todos os seus pensamentos. Certas noites sua pele se cobria de fosforescências e abraçá-la era abraçar um pedaço de noite tatuada de fogo. Mas também se fazia negra e amarga. Nas mais inesperadas horas mugia, suspirava, se contorcia. Seus gemidos acordavam os vizinhos. Quando a ouvia, o vento do mar arranhava a porta da casa ou delirava em voz alta pelos terraços. Os dias nublados a irritavam; quebrava móveis; falava palavrões, cobria-me de insultos e de uma espuma cinza e esverdeada. Cuspia, chorava, blasfemava, profetizava. Sujeita à lua, às estrelas, ao influxo da luz de outros mundos, mudava de humor e de fisionomia de uma maneira que me parecia fantástica, mas que era tal qual a maré.

Começou a queixar-se de solidão. Enchi a casa de caracóis e conchas, pequenos barcos veleiros, que em seus dias de fúria ela fazia naufragar (junto com os outros, carregados de imagens, que todas as noites saíam de minha frente e afundavam nos seus ferozes ou graciosos remoinhos). Quantos pequenos tesouros se perderam naquele tempo! Porém não eram suficientes meus barcos, nem o canto silencioso dos caracóis. Confesso que não sem ciúmes os via nadar na minha amiga, acariciar seus peitos, dormir entre suas pernas, enfeitar seu cabelo com leves relâmpagos de cores. Entre todos aqueles peixes havia uns particularmente repulsivos e ferozes, uns pequenos tigres de aquário, grandes olhos fixos e bocas fendidas e carnívoras. Não sei por que aberração minha amiga tinha prazer de brincar com eles, demonstrando por eles sem rubor uma preferência cujo significado prefiro ignorar. Passava longas horas fechada com aquelas horríveis criaturas.

Um dia não pude mais; derrubei a porta e me joguei sobre eles. Ágeis e fantasmagóricos, escapavam-se entre minhas mãos enquanto ela ria e me batia até me derrubar, Senti que me afogava. E quando estava a ponto de morrer, arroxeado, me depositou na beira e começou a beijar-me, humilhado. E ao mesmo tempo a voluptuosidade me fez fechar os olhos. Porque sua voz era doce e me falava da morte deliciosa dos afogados.

Quando voltei a mim, comecei a temê-la e a odiá-la. Tinha descuidado dos meus assuntos. Voltei a freqüentar os amigos e reatei velhas e queridas relações. Encontrei uma amiga da juventude. Pedindo-lhe que jurasse guardar segredo, contei-lhe minha vida com a onda. Nada comove tanto as mulheres quanto a possibilidade de salvar um homem. Minha redentora usou todas as suas artes, mas o que podia uma mulher, dona de um número limitado de almas e corpos, diante de minha amiga, sempre mutante - e sempre idêntica a si mesma na sua metamorfose incessante? Chegou o inverno. O céu se tornou cinza. O nevoeiro cobriu a cidade. Caía um chuvisco gelado. Minha amiga gritava todas as noites. Durante o dia isolava-se, quieta e sinistra, murmurando uma sílaba só, como uma velha rabugenta que reclama num canto. Ficou fria; dormir com ela era perder a noite e sentir como se gelasse paulatinamente o sangue, os ossos, os pensamentos. Tornou-se impenetrável, revolta. Eu saía com freqüência e minhas ausências eram cada vez mais prolongadas. Ela, no seu canto, uivava longamente. Com os dentes afiados e a língua corrosiva, roia os muros, desmoronava as paredes. Passava as noites acordada, queixando-se de mim. Tinha pesadelos, delirava com o sol, com um grande pedaço de gelo, navegando sob os céus negros nas compridas noites que pareciam meses. Injuriava-me. Amaldiçoava e ria; enchia a casa de gargalhadas e fantasmas. Chamava os monstros das profundidades, cegos, rápidos e obtusos. Carregada de eletricidade, carbonizava tudo o que a roçava. Seus doces braços se tornaram cordas ásperas que me estrangulavam. E seu corpo esverdeado e elástico era um chicote implacável, que batia, batia, batia.

Fugi. Os horríveis peixes riam com risadas ferozes. Lá nas montanhas, entre os altos pinheiros e os despenhadeiros, respirei o ar frio e fino como um pensamento de liberdade. Depois de um mês regressei. Estava decidido. Tinha feito tanto frio que encontrei sobre o mármore da lareira, junto do fogo extinto, uma estátua de gelo. Não me comoveu sua abominável beleza. Joguei-a num grande saco de lona e saí à rua, com a adormecida nas costas. Num restaurante da periferia vendi-a para um garçom amigo, que imediatamente a quebrou em pequenos pedaços, que depositou cuidadosamente nos baldes onde se esfriam as garrafas.

Octavio Paz

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