quinta-feira, 3 de abril de 2014

OUTROS CONTOS

«Os Destruidores», por Graham Greene.

«Os Destruidores»
Conto de Graham Greene

108- «OS DESTRUIDORES»

Foi em Agosto, na véspera do feriado, que o mais recente recruta tornou-se o líder do gangue Wormsley. Ninguém ficou surpreso excepto Mike, mas Mike, com a idade de nove anos ficava surpreendido com tudo.
O novo recruta tinha estado com a turma desde o início das férias de verão, e todos reconheciam as qualidades do seu silêncio natural. Ele nunca desperdiçava uma palavra sequer, nem mesmo para dizer seu nome, até que isso fosse exigido pelas regras. Quando ele disse "Trevor" era uma declaração do facto, e não de vergonha ou desafio, como teria sido com os outros.
A turma se reunia todas as manhãs num estacionamento improvisado - o local da última bomba do primeiro bombardeio. O líder, que era conhecido como Blackie, afirmou tê-la ouvido cair, e ninguém foi preciso o suficiente nas suas contas para notar que, naquela época, ele estaria então com um ano de idade e dormindo na plataforma abaixo da estação do metro de Wormsley. De um lado do estacionamento estava a primeira casa que não foi destruída pelas bombas e depois ocupada, a de número 3.
T, cujas palavras quase se resumiam a votar “Sim” ou “Não” sobre o plano de operações proposto a cada dia por Blackie, assustou toda a turma dizendo, pensativo:
-Wren construiu a casa, meu pai disse.
-Quem é Wren?
-O homem que construiu a catedral de São Paulo.
-Quem se importa?- Blackie disse -É apenas a casa do Velho Tormento.
Velho Tormento - cujo nome verdadeiro era Thomas - tinha sido um construtor e decorador. Agora ele morava sozinho na casa abandonada.
-Já fui no banheiro - um dos meninos disse, pois todos sabiam que, desde que as bombas caíram, algo estava errado com os canos da casa e que o Velho Angústia era pão-duro demais para gastar dinheiro na propriedade. O banheiro era um galpão de madeira no fundo do quintal estreito, com um buraco em forma de estrela na porta.
No dia seguinte, T estava atrasado para o encontro, e a votação para a exploração desse dia ocorreu sem ele. Por sugestão de Blackie a quadrilha se dividiria em pares, tomaria ónibus aleatoriamente e veria quantas viagens gratuitas poderiam ser arrancadas dos motoristas incautos (a operação tinha que ser realizada em pares para evitar mentiras). Eles estavam sorteando as duplas quando T chegou.
-Onde você estava, T? - perguntou Blackie.
-Eu fui lá - disse T.
-Onde?
-No Velho Tormento.
-No Velho Tormento? - Blackie perguntou. Ele tinha uma sensação de que T estava pisando em terreno perigoso, e perguntou esperançosamente:
-Você arrombou a casa?
-Não. Toquei a campainha.
-E o que foi que ele fez?
-Mostrou-me o lugar.
-Você pegou alguma coisa?
-Não.
-Por que é que você fez isso, então?
T disse:
-É uma bela casa.
-O que você quer dizer com é uma bela casa? - perguntou Blackie com desprezo. Ele não estava com ciúmes, e sim ansioso para reter T na gangue, se pudesse. Foi a palavra "bela" que o deixou preocupado - que pertencia a um mundo de classe.
-Se tivesse arrombado - disse ele tristemente – teria sido uma façanha digna da gangue.
-Foi melhor que isso - disse T –Eu descobri coisas!
-Que coisas?
-O Velho Tormento vai ficar fora o dia todo amanhã e no feriado.
Blackie falou com alívio:
-Você quer dizer que podemos invadir?
-E pegar coisas? - perguntou alguém.
-Eu não quero pegar nada - T disse. - Eu tenho uma ideia melhor. 
-Qual?
T levantou os olhos:
-Nós vamos derrubá-la. Vamos destruí-la.
Blackie deu uma gargalhada.
-O que a polícia vai estar fazendo durante isso? - perguntou.
-Eles nunca saberiam. Faremos isso por dentro. Eu encontrei uma maneira de entrar. Seremos como vermes numa maçã: não dá para vê-los enquanto a devoram. Quando sairmos novamente, não haverá nada lá - apenas as paredes, e então nós as derrubamos de alguma forma.
Blackie, inquieto disse:
-Está proposto que amanhã e segunda-feira vamos destruir a antiga casa do Velho Tormento. Quem é a favor?
-Como é que vamos começar? - perguntou Summers.
-Ele vai te dizer - disse Blackie. Era o fim de sua liderança na gangue. Ele foi para a parte de trás do estacionamento e começou a chutar uma pedra de um lado para outro. Ele pensou em voltar para casa, de nunca retornar, de deixá-los todos descobrirem o vazio da liderança de T, mas concluiu que a proposta de T era possível - a fama da gangue do estacionamento de Wormsley certamente percorreria Londres inteira. Haveria manchetes nos jornais.
T estava dando suas ordens com muita ênfase. Era como se este plano tivesse estado com ele sua vida toda.
No domingo de manhã todos foram pontuais, exceto Blackie. Ele pulou o muro do jardim do Angústia e não havia sinal de ninguém em lugar nenhum. O banheiro jazia como um túmulo de um cemitério abandonado. As cortinas estavam fechadas. Eles abriram a porta dos fundos para ele entrar. Ele teve imediatamente uma impressão de organização, muito diferente da sua maneira livre de liderar. Por um tempo, ele subiu e desceu as escadas à procura de T. Ninguém se dirigiu a ele.
O interior da casa estava sendo demolido cuidadosamente, sem que se tocasse nas paredes externas.
-Você realmente conseguiu - Blackie disse, com admiração. - O que vai acontecer?
-Nós apenas começamos - disse T.
A cozinha estava uma bagunça de cacos de vidro e porcelana. A sala de jantar estava com o piso arrancado, as torneiras estavam abertas, a porta tinha sido tirada de suas dobradiças e os destruidores tinham acabado com um andar.
-Você encontrou alguma coisa especial? - perguntou Blackie.
T fez que sim com a cabeça.
-Venha até aqui e olhe – disse. – Tirou de dentro dos seus dois bolsos maços de notas de uma libra.
- As economias do Velho Tormento - disse.
-O que você vai fazer? Dividir com todos?
-Nós não somos ladrões - disse T – Ninguém vai roubar nada desta casa. Eu deixei isto para você e para mim - uma celebração.
Na manhã seguinte, a destruição começou a sério.
-Temos que nos apressar - disse T - Há todos os andares restantes e as escadas. Nós não tiramos uma única janela. Você votou como os outros. Nós vamos destruir esta casa e não haverá mais nada quando estiver terminado. 
Foi então que ouviu o assobio do Mike na parte de trás.
- Alguma coisa está errada - Blackie disse.
- O Velho Tormento - disse Mike. - Ele está chegando!
-Mas por quê? Ele me disse... - T protestou com a fúria da criança que nunca foi.
-Não é justo!
 T ficou de costas para o entulho como um boxeador abatido contra as cordas do ringue. Ele não tinha palavras enquanto seus sonhos eram destruídos. Então Blackie agiu rápido.
-Diga para Mike sair do banheiro e se esconder do lado. Quando ele me ouvir assobiar ele tem que contar até dez e começa a gritar.
-Gritar o quê?
-“Oh, Socorro!”, qualquer coisa.
-Você ouviu, Mike - Blackie disse.
Ele era o líder novamente.
-Rápido, Mike. O banheiro. Fique aqui, Blackie, todos vocês, até que eu grite.
-Onde você está indo, T?
-Não se preocupe, eu vou resolver isso, eu disse que eu o faria, não é?
O Velho Tormento veio mancando mais que o comum. Ele tinha lama em seus sapatos e parou para raspá-los na beira da calçada. Não queria sujar a casa. Em algum lugar alguém assobiou. O velho olhou atentamente ao redor. Ele não confiava em assobios.
Um menino veio correndo do estacionamento para a rua.
-Senhor Thomas! - ele o chamou de “Senhor Thomas”.
-O que foi?
-Sinto muito, senhor Thomas. Um de nós entrou, nós pensamos que você não se importaria, e agora ele não pode sair.
-O que você quer dizer, menino?
-Ele ficou preso em seu banheiro.
-Ele não tinha que se meter aqui... já não te vi antes?
-Você me mostrou a sua casa.
-E daí? E daí se mostrei? Isso não lhe dá o direito de...
-Rápido, senhor Thomas. Ele vai sufocar.
Alguém gritou novamente na escuridão.
-Estou indo, estou indo! – gritou o senhor Thomas.
Ele disse para o rapaz ao seu lado:
-Eu compreendo. Já fui menino também. Desde que as coisas não se passem dos limites.
-Solte-o, senhor Thomas.
-Ele não sofrerá nenhum mal no meu banheiro, disse o senhor Thomas, tropeçando lentamente pelo jardim. Ele parou na porta do banheiro.
-Qual é o problema aí dentro?
Não houve resposta.
-Talvez ele tenha desmaiado – disse o rapaz.
-Não no meu banheiro. Aqui, você, venha para fora! – disse o senhor Thomas, e deu um grande empurrão na porta, que quase caiu de costas quando ela se abriu facilmente.
Uma mão primeiro o apoiou e, em seguida, empurrou-o com força.
Sua cabeça bateu na parede oposta, e ele caiu violentamente sentado. Sua sacola atingiu seus pés. Uma mão tirou a chave da fechadura e a porta bateu.
Deixe-me sair - ele gritou, e ouviu a chave girar na fechadura.
A voz lhe falou calmamente através do orifício em forma de estrela na porta:
-Não se preocupe, Sr. Thomas. Não vamos te machucar, se você ficar quieto.
O Sr. Thomas colocou a cabeça entre as mãos e pensou. Ele tinha notado que havia apenas um carro no estacionamento e com certeza o motorista não viria pegá-lo antes da manhã seguinte.
O Sr.Thomas deu um sonoro grito, mas ninguém respondeu. O barulho não poderia mesmo ter atingido seus inimigos.
Uma voz falou com ele através do buraco.
-Sr. Thomas.
-Deixe-me sair – respondeu, severamente.
-Aqui está um cobertor - disse a voz, e a longa salsicha cinza foi passada através do buraco e caiu em camadas sobre a cabeça do Sr. Thomas.
-Não é nada pessoal - disse a voz. - Queremos que sua noite seja confortável.
-A noite!? – o Sr. Thomas repetiu, incrédulo.
-Pegue, disse a voz. São pães, nós passamos manteiga neles, e linguiça. Não quero que você morra de fome, Sr. Thomas.
Ele implorou desesperadamente.
-Isto é uma piada, rapaz! Deixe-me sair e eu não vou dizer nada. Eu tenho reumatismo. Preciso dormir numa cama confortável.
-Você não vai mais ficar confortável, não nesta casa. 
-O que você quer dizer, menino?
Mas os passos se afastaram. Havia apenas o silêncio da noite.
O Sr.Thomas tentou mais um grito, mas ele estava amedrontado e repreendido pelo silêncio.
Às sete da manhã seguinte, o motorista veio buscar seu carro. Ele ouviu vagamente uma voz gritando, mas não lhe interessava. Ele deu a ré com o carro até encostar no palanque de madeira que sustentava a casa do Sr. Thomas.
O carro se moveu para frente e o motorista olhou se não havia prendido algo na carroceria. Em seguida, ouviu-se o som de um longa arrancada.
Não havia nenhuma casa ao lado do estacionamento, apenas um monte de escombros.
O motorista voltou a ouvir o grito de alguém.
Vinha da construção de madeira que era a coisa mais parecida com uma casa no meio daquelas ruínas. O motorista pulou o muro e destravou a porta.
O Sr. Thomas saiu do banheiro. Ele deu um grito, soluçando.
- A minha casa! Onde está a minha casa?
- Eu também quero uma! - disse o motorista, e começou a rir. Não havia sobrado nada em lugar algum.
-Como você ousa rir? - disse o Sr. Thomas. –Aqui era a minha casa. Minha casa!
- Sinto muito - disse o motorista. - Eu não posso ajudá-lo, Sr. Thomas. Não é nada pessoal, mas você tem que admitir que é engraçado.

Graham Greene

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