«O Mistério da Árvore»
Árvore dos Enforcados, por Stefano Maglovsky
110- «O MISTÉRIO DA ÁRVORE»
Esgalhada e seca, os seus frutos eram cadáveres ou corvos.
Ninguém se lembrava que tivesse dado folhas nem flor, a árvore enorme que havia
séculos servia de forca: ninguém se deitava à sua sombra, e até o sol fugia da
árvore estarrecida e hirta que havia séculos servia de forca.
Em frente ficava o Palácio real, construído num bloco
de pedra escura, e só o Rei, de alma igual à sua alma, nua e trágica, se pusera
a amá-la, a árvore triste que havia séculos servia de forca.
Que doença estranha, lenta mas tenaz, matava o Rei?...
Só amava os crepúsculos, as agonias da luz, o passado, e a multidão silenciosa
vinha vê-lo, ao fim da tarde, de cabeça encostada aos vidros das janelas, fixo
o olhar nas águas verdes e limosas e no espectro da árvore levantada diante do
Palácio. Tudo que era vivo fugira de ao pé dele, porque o Rei mandava punir a
mocidade e o amor, e dez léguas à roda o país tinha sido assolado pelos seus
guerreiros brutais. Mandara queimar tudo, devastar tudo no seu reino. Nem uma
folha nem uma ave — nem um sinal de vida. De pé unicamente a árvore, desde
séculos estarrecida e hirta, a árvore maldita que no seu reino servia de forca.
No silêncio tumular do Palácio os passos do Rei
ecoavam pelos corredores desertos, lentos ou precipitados, conforme o
pensamento tenaz que o devorava, gastando pouco a pouco as lajes duras do chão.
Não podia amar. Nem a voluptuosidade, nem o ideal, nem o amor, nem a carne
láctea das mulheres: tudo lhe era vedado. Horas atrás de horas se ouviam no
Palácio os passos do Rei doente, toda a noite, toda a noite a rondar...
Sucedeu que veio a Primavera e todas as árvores, para
lá do território assolado, estremeceram e se cobriram de flor. Borboletas
nascidas do seu hálito noivavam no azul, e dois mendigos amorosos, de países
lendários, entraram e perderam-se naquela terra praguenta, ela envolta na
poalha dos cabelos louros, ele feliz e esbelto, preso ao seu olhar. Eram
pobres. E assim, apenas vestidos, vieram enlaçados com a Primavera,
cobrindo a terra erma, que calcavam de vida e de amor. Eram pobres e felizes.
Flores esvoaçavam pela sua nudez, e as macieiras dos quintais deitavam galhos
fora dos muros, de propósito para os ver passar.
Azul, sonho, entontecimento, toda a atmosfera estremecia.
Só o Rei no Palácio deserto vivia braço a braço com a dor. A vida, a luz, as
árvores enojavam-no. Queria todo o país negro, deserto e escalvado; e o amor
que trespassava a terra e os bichos, a própria morte que tudo transforma, lhe
pareciam abominação e afronta. Odiava a vida. Mas deitava-se e sentia palpitar
as fragas: os montes eram seios duros, as árvores cabelos ao vento. Para não
ver, encerrava-se no Palácio construído dum bloco de pedra, e sozinho ficava
então de olhos postos na árvore. Contemplava-a. Como o Rei, ela era seca e
hirta — fora-o sempre — e os seus frutos cadáveres ou corvos. À passagem de
Abril e dos mendigos, tudo à volta se transformava: só ela quedava inerte
diante da vida e do amor, a árvore trágica que havia séculos que servia de
forca.
Um dia o Rei soube que dois seres felizes haviam
transposto as fronteiras e mandou-os logo prender. Nas últimas noites
sentira-os nos espinheiros túmidos, nos sapos dos caminhos que pareciam
extáticos, nas coisas que estremeciam, na noite magnética cheia de murmúrios,
no vento que atirava para o castelo ramos de árvores luminosos. Punha-se de
ouvido à escuta, e a terra, a noite e o mar sufocados iam talvez falar, iam
enfim falar...
Quando os soldados os trouxeram ao Palácio, com eles
entrou um bafo novo: cheiravam a sol e à lama dos caminhos e pegava-se-lhes
húmus aos pés descalços. A vida rompeu por aquele túmulo dentro e, pois que iam
morrer, dir-se-ia que a morte, em lugar da foice simbólica, pela primeira vez
trazia nas mãos um ramo de árvore.
Dois mendigos e amavam-se! Nem sequer eram extraordinariamente
belos, mas deles irradiava uma força imensa — daquela moça sardenta, com
resquícios de palha pegados aos cabelos, daquele homem cuja carne aparecia
entre os farrapos. Não davam pelo Rei, não davam pela Morte. Amavam-se.
Atreviam-se num país que ele mandara assolar para que nunca mais diante de
seus olhos pudesse aparecer a imagem da vida e do amor!
Olhou-os o Rei durante alguns minutos em silêncio, e
depois fez um gesto aos carrascos, que logo se apoderaram deles e os levaram.
Sorriam-se os mendigos cheios de terra e ervas, e, enlevados, olharam um para o
outro, ignorando o que se passava em volta — olhos nos olhos, mãos nas mãos...
Noite negra, o Rei subiu sozinho ao
terraço. Restos de nuvens, restos de mantos esfarrapados arrastavam-se pelo
céu. A árvore onde os dois haviam sido enforcados mal se distinguia no escuro;
mas de lá vinha um frémito, a sua agonia talvez, e uma claridade, os seus
corpos decerto. Em vão reduzira tudo a cinzas — por baixo das cinzas latejava
a vida. Toda a terra parecia fermentar. Ouvia murmúrios. Se as árvores
falassem!, se as árvores e as coisas dissessem tudo que sabem! A água chalrava.
perdia-se em fios pela terra. Mas então ele não mandara secar as fontes? Vozes,
mais vozes ainda no escuro, a voz baixinha e humilde das árvores cheias de
folhas. que o vento chegava umas para as outras... Mas então ele não mandara
despir para sempre as árvores? Pior... Mais fundo ainda, no negrume opaco da
noite, o sussurro da vida — como se ele não tivesse mandado espezinhar a
vida!... Encostado à muralha, passou a noite absorto. As nuvens galopavam, o
grasnido dos corvos afligia-o... Porque não iria ele também ser a macieira,
mendigo, húmus?, transformar a dor em felicidade?, beber o sol arrastado na
aluvião da vida? Oh, como odiava a mocidade, a ternura, os lábios moços que se
beijam!...
Só a árvore esgalhada e seca o prendia ainda, a árvore
que no seu reino servia de forca.
Ficou até de manhã de olhos postos naquele fantasma
triste e enorme, negro como as ideias negras que tecia, seco como a sua própria
alma — a árvore desmedida que no seu reino servia de forca... Começaram os
cerros a tingir-se de violeta, as árvores a azular, e a forca, em que se
absorvia, a destacar-se de entre a névoa, a árvore esgalhada e imensa que havia
séculos perdera a seiva e a vida.
Súbito ficou imóvel de espanto. Aquecida com o amor de
dois mendigos, tinha o galho em que se pendiam enforcados cheiinho de flor.
Dura e má como as pragas juntara no ramo que os cobria toda a flor que a terra
assolada não pudera produzir. Era nada, quase nada, algumas flores miudinhas
prestes a sumirem-se ao primeiro sopro — era dor estreme e sonho estreme. Nos seus
braços haviam sido enforcados muitos desgraçados e as suas raízes mortas pelas
lágrimas de aflição. Tolhida com os gritos, não bebia água nem sugava húmus.
Vira passar homens, Primaveras e reinados, sem se comover, mão arrepelada a
amaldiçoar a terra e o castelo. Assistira a transformações de solo, a
tempestades, a cataclismos e a guerras, sempre petrificada como a morte — e
naquela noite, trespassada pelo amor dos dois mendigos, desentranhara-se em
ternura, como se nela se concentrasse toda a paixão, a Primavera e o noivado
da terra — a árvore maldita que desde séculos servia de forca.
Raul Brandão
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