«Episódio do Inimigo»
Conto de Jorge Luis Borges
178- «EPISÓDIO DO INIMIGO»
Tantos anos fugindo e esperando e agora o inimigo estava na
minha casa. Da janela o vi subir penosamente pelo áspero caminho do cerro.
Ajudava-se com um bastão, com o torpe bastão em suas velhas mãos não podia ser
uma arma, e sim um báculo. Custou-me perceber o que esperava: a batida fraca na
porta. Fitei-o, não sem nostalgia, meus manuscritos, o rascunho interrompido e
o tratado de Artemidoro sobre os gregos. Outro dia perdido, pensei. Tive de
forcejar com a chave. Temi que o homem desmoronasse, mas deu alguns passos
incertos, soltou o bastão, que não voltei a ver, e caiu em minha cama, rendido.
Minha ansiedade o imaginara muitas vezes, mas só então notei que se parecia de
modo quase fraternal, com o último retrato de Lincoln. Deviam ser quatro da
tarde.
Inclinei-me sobre ele para que me ouvisse.
- Pensamos que os anos passam apenas para nós - disse-lhe -,
mas passam também para os outros. Aqui nos encontramos, por fim, e o que
aconteceu antes não tem sentido.
Enquanto eu falava, ele desabotoara o casaco. A mão direita
estava no bolso do paletó. Assinalava-me algo e senti que era um revólver.
Disse-me então com voz firme:
- Para entrar em sua casa, recorri à compaixão. Agora o
tenho a minha mercê e não sou misericordioso.
Ensaiei algumas palavras. Não sou um homem forte e só as
palavras podiam salvar-me. Atinei a dizer:
- É verdade que há tempos maltratei um menino, mas você já
não é aquele menino nem eu aquele insensato. Além disso, a vingança não é menos
fátua e ridícula que o perdão.
- Justamente porque já não sou aquele menino - replicou-me -
tenho de matá-lo. Não se trata de uma vingança, mas de um ato de justiça. Seus
argumentos, Borges, são meros estratagemas de seu terror para que eu não o
mate. Você não pode fazer mais nada.
- Posso fazer uma coisa - respondi.
- O quê? - perguntou-me.
- Acordar.
E foi o que fiz.
Jorge Luis Borges
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