(Peças Soltas no Interior da Circunferência)
«Novembro de 1939», por Eveline Sambraz.
«Novembro de 1939»
O Longo Adeus, por Brent Heighton
173- «Novembro de 1939»
Naquela manhã do mês de Novembro de 1939, fria e chuvosa, cerca das oito horas
da manhã, na Plaza Mayor de Badajoz, junto ao local de que habitualmente partia
a camioneta da linha de transportes “La Estelleza“, dois vultos
aguardavam abrigados debaixo dum grande guarda-chuva. Eram um casal. Homem e
mulher. Estavam bem agasalhados e parecia que se preparavam para fazer uma
longa viagem pois tinham com eles duas grandes malas que rebentavam pelas
costuras, atadas por baraços que reforçavam a segurança dos fechos. Eram
Guadalupe Potra e Santiago Grazina.
Santiago era um refugiado da Guerra Civil Espanhola que tinha sido, em 1938,
recolhido e protegido pela família de Guadalupe quando passara a salto a
fronteira entre os dois países. Durante o último ano vivera escondido no Monte
do Meio, ali nas proximidades das Hortinhas, participando nos trabalhos do
campo e enamorando-se de Guadalupe. Esta, que correspondia a esse amor, quando
Santiago manifestou vontade de regressar a Espanha, falou com os irmãos, e
disse-lhes que o acompanharia, de nada valendo as advertências destes em
relação à situação que se vivia no país vizinho e dos perigos que isso
implicava. A guerra tinha terminado apenas há uns meses e a perseguição aos
partidários da segunda republica espanhola, que acabava de ser deposta,
continuava a fazer-se com muita ferocidade. Os ajustes de contas eram diários,
as prisões estavam cheias e todos os dias havia notícias de execuções por
fuzilamento. Todos estes argumentos não conseguiram demover Guadalupe de
acompanhar Santiago.
Em face da obstinação de Guadalupe, não restou aos irmãos outra alternativa que
não fosse utilizar, eles próprios, toda a sua experiência naquelas andanças e
pôr em movimento a estrutura em que tinham participado nos últimos anos,
salvando algumas dezenas de vidas de fugitivos do fascismo, assim como todos os
conhecimentos que uma vida inteira de contrabandistas lhes tinha proporcionado.
Aliás, todos sabiam que esse era o destino de Guadalupe. Quando verificaram que
ela correspondia aos sentimentos de Santiago, expressos todos os dias, duma
forma bem clara, e quando ela se mudou para o quarto dele, dizendo que tinha
encontrado o seu homem, ficou entendido por todos, que aqueles dois estavam
para sempre ligados. O fado de um, seria o fado do outro.
Assim, munidos de vistos e documentos falsos, que os davam como um casal de
espanhóis em visita a parentes que tinham em Sevilha, esperavam agora pela
camioneta de carreira da linha que fazia a ligação entre Badajoz e aquela
cidade. Verdade seja dita, não fora fácil a obtenção dos vistos e dos
documentos. Isso só fora possível devido aos contactos que os Rodriguez Potra
tinham cimentado ao longo dos anos, e à disponibilidade que sempre, durante
toda a guerra civil espanhola, tinham demonstrado no auxílio aos refugiados
políticos. Existia já uma estrutura clandestina, junto à fronteira, que os
resistentes espanhóis e alguns portugueses tinham montado, e que iria resistir
e aguentar-se durante os longos consulados franquista e salazarista. O próprio
motorista da camioneta pertencia a essa estrutura e iria guiá-los e protegê-los
durante a viagem, até os entregar, em Sevilha, a outro companheiro que por sua
vez os encaminharia em segurança.
E lá partiram, depois de olhares cúmplices, trocados entre eles e o motorista,
e é agora, por volta da entrada da camioneta na Andaluzia, quando os limites
destas peças soltas no interior da circunferência terminam, que nós os
deixamos também.
Iremos encontrá-los mais tarde, noutros capítulos deste relato. Primeiro, num
campo de refugiados espanhóis no sul de França. Depois, já durante a 2ª Guerra
Mundial, Santiago irá combater nas fileiras das tropas da França Livre, sob o
comando do general Charles de Gaulle, e por fim, ocupará o posto de sargento na
Legião Estrangeira Francesa, estacionada na Argélia. Mais tarde ainda, tomará o
partido dos independentistas daquela colónia francesa do norte de África e
festejará os acordos de Envian, em 1962, que darão a independência a Argel.
Quanto a Guadalupe, lutará contra a ocupação alemã da França, integrada na
resistência francesa, e de tal forma se destacará que, no fim da guerra, será
agraciada com a Legião de Honra pelo governo francês.
Eveline Sambraz
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