«Sermão de Santo António aos Peixes»
Por Padre António Vieira
Por aqui:
IV Capítulo
167- «SERMÃO DE SANTO ANTÓNIO AOS PEIXES»
Antes, porém, que vos vades, assim como ouvistes os vossos
louvores, ouvi também agora as vossas repreensões. Servir-vos-ão de confusão,
já que não seja de emenda. A primeira cousa que me desedifica, peixes, de vós,
é que vos comeis uns aos outros. Grande escândalo é este, mas a circunstância o
faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem
os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os
grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os
pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande. Olhai como
estranha isto Santo Agostinho: Homines pravis, praeversisque cupiditatibus
facti sunt, sicut pisces invicem se devorantes: «Os homens com suas más e
perversas cobiças, vêm a ser como os peixes, que se comem uns aos outros.» Tão
alheia cousa é, não só da razão, mas da mesma natureza, que sendo todos criados
no mesmo elemento, todos cidadãos da mesma pátria e todos finalmente irmãos,
vivais de vos comer! Santo Agostinho, que pregava aos homens, para encarecer a
fealdade deste escândalo, mostrou-lho nos peixes; e eu, que prego aos peixes,
para que vejais quão feio e abominável é, quero que o vejais nos homens.
Olhai, peixes, lá do mar para a terra. Não, não: não é isso
o que vos digo. Vós virais os olhos para os matos e para o sertão? Para cá,
para cá; para a cidade é que haveis de olhar. Cuidais que só os Tapuias se
comem uns aos outros? Muito maior açougue é o de cá, muito mais se comem os
Brancos. Vedes vós todo aquele bulir, vedes todo aquele andar, vedes aquele
concorrer às praças e cruzar as ruas; vedes aquele subir e descer as calçadas,
vedes aquele entrar e sair sem quietação nem sossego? Pois tudo aquilo é
andarem buscando os homens como hão-de comer e como se hão-de comer. Morreu
algum deles, vereis logo tantos sobre o miserável a despedaçá-lo e comê-lo.
Comem-no os herdeiros, comem-no os testamenteiros, comem-no os legatários,
comem-no os acredores; comem-no os oficiais dos órfãos e os dos defuntos e
ausentes; come-o o médico, que o curou ou ajudou a morrer; come-o o sangrador
que lhe tirou o sangue; come-a a mesma mulher, que de má vontade lhe dá para a
mortalha o lençol mais velho da casa; come-o o que lhe abre a cova, o que lhe
tange os sinos, e os que, cantando, o levam a enterrar; enfim, ainda o pobre
defunto o não comeu a terra, e já o tem comido toda a terra.
Já se os homens se comeram somente depois de mortos, parece
que era menos horror e menos matéria de sentimento. Mas para que conheçais a
que chega a vossa crueldade, considerai, peixes, que também os homens se comem
vivos assim como vós. Vivo estava Job, quando dizia: Quare persequimini
me, et carnibus meis saturamini? «Porque me perseguis tão desumanamente, vós,
que me estais comendo vivo e fartando-vos da minha carne?» Quereis ver um Job
destes?
Vede um homem desses que andam perseguidos de pleitos ou
acusados de crimes, e olhai quantos o estão comendo. Come-o o meirinho, come-o
o carcereiro, come-o o escrivão, come-o o solicitador, come-o o advogado,
come-o o inquiridor, come-o a testemunha, come-o o julgador, e ainda não está
sentenciado, já está comido. São piores os homens que os corvos. O triste que
foi à forca, não o comem os corvos senão depois de executado e morto; e o que
anda em juízo, ainda não está executado nem sentenciado, e já está comido.
E para que vejais como estes comidos na terra são os
pequenos, e pelos mesmos modos com que vós comeis no mar, ouvi a Deus
queixando-se deste pecado: Nonne cognoscent omnes, qui operantur
iniquitatem, qui devorunt plebem meam, ut cibum panis? «Cuidais, diz Deus, que
não há-de vir tempo em que conheçam e paguem o seu merecido aqueles que cometem
a maldade?» E que maldade é esta, à qual Deus singularmente chama maldade, como
se não houvera outra no Mundo? E quem são aqueles que a cometem? A maldade é
comerem-se os homens uns aos outros, e os que a cometem são os maiores, que
comem os pequenos: Qui devorant plebem meam, ut cibum panis.
Nestas palavras, pelo que vos toca, importa, peixes, que
advirtais muito outras tantas cousas, quantas são as mesmas palavras. Diz Deus
que comem os homens não só o seu povo, senão declaradamente a sua plebe: Plebem
meam, porque a plebe e os plebeus, que são os mais pequenos, os que menos podem
e os que menos avultam na república, estes são os comidos. E não só diz que os
comem de qualquer modo, senão que os engolem e os devoram: Qui devorant.
Porque os grandes que têm o mando das cidades e das províncias, não se contenta
a sua fome de comer os pequenos um por um, ou poucos a poucos senão que devoram
e engolem os povos inteiros: Qui devorant plebem meam. E de que modo os
devoram e comem? Ut cibum panis: não como os outros comeres, senão como
pão.
A diferença que há entre o pão e os outros comeres, é que
para a carne, há dias de carne, e para o peixe, dias de peixe, e para as
frutas, diferentes meses no ano; porém o pão é comer de todos os dias, que
sempre e continuadamente se come: e isto é o que padecem os pequenos. São o pão
quotidiano dos grandes; e assim como o pão se come com tudo, assim com tudo e
em tudo são comidos os miseráveis pequenos, não tendo nem fazendo ofício em que
os não carreguem, em que os não multem, em que os não defraudem, em que os não
comam, traguem e devorem: Qui devorant plebem meam, ut cibum panis.
Parece-vos bem isto, peixes? Representa-se-me que com o
movimento das cabeças estais todos dizendo que não, e com olhardes uns para os
outros, vos estais admirando e pasmando de que entre os homens haja tal
injustiça e maldade! Pois isto mesmo é o que vós fazeis. Os maiores comeis os
pequenos; e os muito grandes não só os comem um por um, senão os cardumes
inteiros, e isto continuamente sem diferença de tempos, não só de dia, senão
também de noite, às claras e às escuras, como também fazem os homens.
Se cuidais, porventura, que estas injustiças entre vós se
toleram e passam sem castigo, enganais-vos. Assim como Deus as castiga nos
homens, assim também por seu modo as castiga em vós. Os mais velhos, que me
ouvis e estais presentes, bem vistes neste Estado, e quando menos ouviríeis
murmurar aos passageiros nas canoas, e muito mais lamentar aos miseráveis
remeiros delas, que os maiores que cá foram mandados, em vez de governar e
aumentar o mesmo Estado, o destruíram; porque toda a fome que de lá traziam, a
fartavam em comer e devorar os pequenos.
Assim foi; mas, se entre vós se acham acaso alguns dos que,
seguindo a esteira dos navios, vão com eles a Portugal e tornam para os mares
pátrios, bem ouviriam estes lá no Tejo que esses mesmos maiores que cá comiam
os pequenos, quando lá chegam, acham outros maiores que os comam também a eles.
Este é o estilo da divina justiça tão antigo e manifesto, que até os Gentios o
conheceram e celebraram:
Vos quibus rector maris, atque terrae
Ius dedit magnum necis, atque vitae;
Ponite inflatos, tumidosque vultus;
Quidquid a vobis minor extimescit,
Maior hoc vobis dominus minatur.
Notai, peixes, aquela definição de Deus: Rector maris
atque terrae: «Governador do mar e da terra»; para que não duvideis que o mesmo
estilo que Deus guarda com homens na terra, observa também convosco no mar.
Necessário é logo que olheis por vós e que não façais pouco caso da doutrina
que vos deu o grande Doutor da Igreja Santo Ambrósio, quando, falando convosco,
disse: Cave nedum alium insequeris, incidas in validiorem: «Guarde-se o
peixe que persegue o mais fraco para o comer, não se ache na boca do mais
forte», que o engula a ele. Nós o vemos aqui cada dia. Vai o xaréu correndo
atrás do bagre, como o cão após a lebre, e não vê o cego que lhe vem nas costas
o tubarão com quatro ordens de dentes, que o há-de engolir de um bocado. E o
que com maior elegância vos disse também Santo Agostinho: Praedo minoris
fit praeda maioris. Mas não bastam, peixes, estes exemplos para que acabe de se
persuadir a vossa gula, que a mesma crueldade que usais com os pequenos tem já
aparelhado o castigo na voracidade dos grandes?
Já que assim o experimentais com tanto dano vosso, importa
que de aqui por diante sejais mais repúblicos e zelosos do bem comum, e que
este prevaleça contra o apetite particular de cada um, para que não suceda que,
assim como hoje vemos a muitos de vós tão diminuídos, vos venhais a consumir de
todo. Não vos bastam tantos inimigos de fora e tantos perseguidores tão astutos
e pertinazes, quantos são os pescadores, que nem de dia nem de noite deixam de
vos pôr em cerco e fazer guerra por tantos modos?! Não vedes que contra vós se
emalham e entralham as redes, contra vós se tecem as nassas, contra vós se
torcem as linhas, contra vós se dobram e farpam os anzóis, contra vós as fisgas
e os arpões? Não vedes que contra vós até as canas são lanças e as cortiças
armas ofensivas? Não vos basta, pois, que tenhais tantos e tão armados inimigos
de fora, senão que também vós de vossas portas a dentro o haveis de ser mais
cruéis, perseguindo-vos com uma guerra mais que civil e comendo-vos uns aos
outros? Cesse, cesse já, irmãos peixes, e tenha fim algum dia esta tão
perniciosa discórdia; e pois vos chamei e sois irmãos, lembrai-vos das
obrigações deste nome. Não estáveis vós muito quietos, muito pacíficos e muito
amigos todos, grandes e pequenos, quando vos pregava Santo António? Pois
continuai assim, e sereis felizes.
Dir-me-eis (como também dizem os homens) que não tendes
outro modo de vos sustentar. E de que se sustentam entre vós muitos que não
comem os outros? O mar é muito largo, muito fértil, muito abundante, e só com o
que bota às praias pode sustentar grande parte dos que vivem dentro nele.
Comerem-se uns animais aos outros é voracidade e sevícia, e não estatuto da
natureza. Os da terra e do ar, que hoje se comem, no princípio do Mundo não se
comiam, sendo assim conveniente e necessário para que as espécies se
multiplicassem. O mesmo foi (ainda mais claramente) depois do dilúvio, porque,
tendo escapado somente dois de cada espécie, mal se podiam conservar, se se
comessem. E finalmente no tempo do mesmo dilúvio, em que todos viveram juntos
dentro na arca, o lobo estava vendo o cordeiro, o gavião a perdiz, o leão o
gamo, e cada um aqueles em que se costuma cevar; e se acaso lá tiveram essa
tentação, todos lhe resistiram e se acomodaram com a ração do paiol comum que
Noé lhes repartia. Pois se os animais dos outros elementos mais cálidos foram
capazes desta temperança, porque o não serão os da água? Enfim, se eles em
tantas ocasiões, pelo desejo natural da própria conservação e aumento, fizeram
da necessidade virtude, fazei-o vós também; ou fazei a virtude sem necessidade
e será maior virtude.
Outra cousa muito geral, que não tanto me desedifica, quanto
me lastima em muitos de vós é aquela tão notável ignorância e cegueira que em
todas as viagens experimentam os que navegam para estas partes. Toma um homem
do mar um anzol, ata-lhe um pedaço de pano cortado e aberto em duas ou três
pontas, lança-o por um cabo delgado até tocar na água, e em o vendo o peixe,
arremete cego a ele e fica preso e boqueando, até que, assim suspenso no ar, ou
lançado no convés, acaba de morrer. Pode haver maior ignorância e mais rematada
cegueira que esta? Enganados por um retalho de pano, perder a vida?
Dir-me-eis que o mesmo fazem os homens. Não vo-lo nego. Dá
um exército batalha contra outro exército, metem-se os homens pelas pontas dos
piques, dos chuços e das espadas, e porquê? Porque houve quem os engodou e lhes
fez isca com dois retalhos de pano. A vaidade entre os vícios é o pescador mais
astuto e que mais facilmente engana os homens. E que faz a vaidade? Põe por
isco na ponta desses piques, desses chuços e dessas espadas dois retalhos de
pano, ou branco, que se chama hábito de Malta, ou verde, que se chama de Avis.
ou vermelho, que se chama de Cristo e de Santiago; e os homens, por chegarem a
passar esse retalho de pano ao peito, não reparam em tragar e engolir o ferro.
E depois que sucede? O mesmo que a vós. O que engoliu o ferro, ou ali, ou
noutra ocasião ficou morto; e os mesmos retalhos de pano tornaram outra vez ao
anzol para pescar outros.
Por este exemplo vos concedo, peixes, que os homens fazem o
mesmo que vós, posto que me parece que não foi este o fundamento da vossa
resposta ou escusa, porque cá no Maranhão, ainda que se derrame tanto sangue,
não há exércitos, nem esta ambição de hábitos.
Mas nem por isso vos negarei que também cá se deixam pescar
os homens pelo mesmo engano, menos honrada e mais ignoradamente. Quem pesca as
vidas a todos os homens do Maranhão, e com quê? Um homem do mar com uns
retalhos de pano. Vem um mestre de navio de Portugal com quatro varreduras das
lojas, com quatro panos e quatro sedas, que já se lhes passou a era e não têm
gasto; e que faz? Isca com aqueles trapos aos moradores da nossa terra: dá-lhes
uma sacadela e dá-lhes outra, com que cada vez lhes sobe mais o preço; e os
bonitos, ou os que querem parecer, todos esfaimados aos trapos, e ali ficam
engasgados e presos, com dívidas de um ano para outro ano, e de uma safra para
outra safra, e lá vai a vida. Isto não é encarecimento. Todos a trabalhar toda
a vida, ou na roça, ou na cana, ou no engenho, ou no tabacal; e este trabalho de
toda a vida, quem o leva? Não o levam os coches, nem as liteiras, nem os
cavalos, nem os escudeiros, nem os pajens, nem os lacaios, nem as tapeçarias,
nem as pinturas nem as baixelas, nem as jóias; pois em que se vai e despende
toda a vida? No triste farrapo com que saem à rua, e para isso se matam todo o
ano.
Não é isto, meus peixes, grande loucura dos homens com que
vos escusais? Claro está que sim; nem vós o podeis negar. Pois se é grande
loucura esperdiçar a vida por dois retalhos de pano, quem tem obrigação de se
vestir; vós, a quem Deus vestiu do pé até à cabeça, ou de peles de tão vistosas
e apropriadas cores, ou de escamas prateadas e doiradas, vestidos que nunca se
rompem, nem gastam com o tempo, nem se variam ou podem variar com as modas; não
é maior ignorância e maior cegueira deixardes-vos enganar ou deixardes-vos
tomar pelo beiço com duas tirinhas de pano? Vede o vosso Santo António, que
pouco o pode enganar o Mundo com essas vaidades. Sendo moço e nobre, deixou as
galas de que aquela idade tanto se preza, trocou-as por uma loba de sarja e uma
correia de cónego regrante; e depois que se viu assim vestido, parecendo-lhe
que ainda era muito custosa aquela mortalha, trocou a sarja pelo burel e a
correia pela corda. Com aquela corda e com aquele pano, pescou ele muitos, e só
estes se não enganaram e foram sisudos.
Padre António Vieira
Amanhã, V capítulo/ Sermão de Santo António aos Peixes.
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