188- «O DENTE QUEBRADO»
Aos doze anos de idade, Juan Pena, brigando com uns moleques
de rua, levou uma pedrada num dente; o sangue correu, lavando-lhe o sujo da
cara, e o dente partiu-se em forma de serra. Nesse dia começa a idade de ouro
de Juan Pena.
Com a ponta da língua, Juan passava o tempo a roçar o dente
quebrado — o corpo imóvel, o olhar vago, sem pensar. Assim, de rebelde e brigão
que era, fez-se calado e manso.
Os pais de Juan, fartos de ouvir queixas da vizinhança e dos
transeuntes — vítimas das perversidades do garoto —, e que haviam esgotado toda
espécie de repreensões e castigos, achavam-se agora estupefactos e aflitos com
essa transformação.
Juan não dizia uma palavra, e passava horas a fio em atitude
hierática, como em êxtase, enquanto lá dentro, na escuridão da boca fechada,
sua língua acariciava o dente quebrado. Sem pensar.
— Esse menino não anda bem, Paulo — dizia a mãe ao marido.
— É preciso chamar o médico.
Veio o doutor, grave e pançudo, e fez o diagnóstico: pulso
normal, bochechas sangüíneas, excelente apetite, nenhum sintoma de doença.
— Minha senhora — acabou por dizer o sábio, depois de longo
exame —, a honestidade da minha pessoa impõe que lhe declare...
— O quê, senhor doutor de minha alma? — interrompeu a
angustiada mãe.
— Que seu filho está são como um perro. O que é indiscutível
— continuou, em voz misteriosa —, é que estamos em face de um caso fenomenal:
seu filho, minha estimável senhora, sofre daquilo a que hoje chamamos o mal de
pensar; numa palavra, seu filho é um filósofo precoce, um gênio talvez.
Na escuridão da boca, Juan acariciava o seu dente quebrado.
Sem pensar.
Parentes e amigos fizeram-se eco da opinião do doutor,
acolhida com indescritível júbilo pelos pais de Juan. Dentro em pouco,
citava-se em toda a cidade o espantoso caso do “menino-prodígio”, e sua fama
cresceu como um balão inchado de fumaça. Até o mestre-escola, que sempre o
tivera como a cabeça mais lerda deste mundo, submeteu-se à opinião geral, visto
que a voz do povo é a voz de Deus. E cada um trazia a confronto o seu exemplo:
Demóstenes comia areia; Shakespeare era um malandrinho esfarrapado; Edison etc.
Cresceu Juan Pena entre livros abertos diante dos olhos, mas
que ele não lia, distraído pela tarefa de sua língua ocupada em tocar a pequena
serra do dente quebrado. Sem pensar.
E, com o corpo, crescia-lhe a reputação de homem judicioso, sábio e “profundo”, e ninguém se cansava de louvar o talento maravilhoso de Juan.
Juan ainda em plena mocidade, e as mais belas mulheres
tratando de seduzir e conquistar aquele espírito superior, entregue a fundas
meditações, segundo o julgamento de todos, mas que, na escuridão de sua boca,
roçava o dente quebrado. Sem pensar.
Passaram-se meses e anos, e Juan Pena foi deputado,
académico, ministro. E achava-se a pique de ser eleito presidente da República,
quando a apoplexia o surpreendeu, acariciando com a ponta da língua o seu dente
quebrado.
E os sinos dobraram; e foi decretado rigoroso luto nacional;
um orador chorou, numa oração fúnebre, em nome da pátria; e caíram rosas e
lágrimas sobre o túmulo do grande homem que não tivera tempo de pensar.
Pedro Emílio Coll
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