quinta-feira, 5 de junho de 2014

OUTROS CONTOS

Comemora-se a efeméride do Sermão de Santo António aos Peixes, por Padre António Vieira. Foi há 360 anos, a 13 de Junho de 1654 no Brasil, em São Luís do Maranhão...
Poet’anarquista
Padre António Vieira
Padre, Filósofo, Escritor e Orador Português

Sobre o Sermão de Santo António aos Peixes...

Sermão pregado em São Luís do Maranhão, a 13 de Junho de 1654, três dias antes de se embarcar ocultamente para o Reino. Revela fina ironia, riqueza nas sugestões alegóricas e agudo senso de observação sobre os vícios e vaidades do Homem, comparando-o através de alegorias, aos peixes. 

Critica a prepotência dos grandes que, como peixes, vivem do sacrifício de muitos pequenos, os quais «engolem" e "devoram». O alvo são os colonos do Maranhão, que no Brasil são grandes, mas em Portugal «acham outros maiores que os comam, também, a eles.»

Censura os soberbos (=rocandores), os pregadores (=parasitas); os ambiciosos(=voadores); os hipócritas e traidores (= polvos).

«O polvo com aquele seu cabelo na cabeça, parece um monge; com aqueles seus ralos estendidos, parece uma estrela; com aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura, a mesma mansidão. E debaixo dessa aparência tão modesta ou dessa hipocrisia tão santa, testemunham constantemente (...) que o dito polvo é o maior traidor do mar.»

É muito conhecido o exórdio deste sermão, que permite estabelecer a unidade e a circularidade do argumento, que volta sempre o ponto inicial, o conceito predicável: «Vós sois o sal da terra»,Vos estis sal terrae. S. Mateus, V, l3.
Fonte: http://portuguesonline2.no.sapo.pt/sermaointegral.htm

«Sermão de Santo António aos Peixes», por Padre António Vieira.

 «Sermão de Santo António aos Peixes»
Por Padre António Vieira

Por aqui:
«OUTROS CONTOS», I Capítulo
«OUTROS CONTOS», II Capítulo
«OUTROS CONTOS», III Capítulo
«OUTROS CONTOS», IV Capítulo
«OUTROS CONTOS», V Capítulo

VI e Último Capítulo

169- «SERMÃO DE SANTO ANTÓNIO AOS PEIXES»

Com esta última advertência vos despido, ou me despido de vós, meus peixes. E para que vades consolados do sermão, que não sei quando ouvireis outro, quero-vos aliviar de uma desconsolação mui antiga, com que todos ficastes desde o tempo em que se publicou o Levítico. Na lei eclesiástica ou ritual do Levítico, escolheu Deus certos animais que lhe haviam de ser sacrificados; mas todos eles ou animais terrestres ou aves, ficando os peixes totalmente excluídos dos sacrifícios. E quem duvida que esta exclusão tão universal era digna de grande desconsolação e sentimento para todos os habitadores de um elemento tão nobre, que mereceu dar a matéria ao primeiro sacramento? O motivo principal de serem excluídos os peixes, foi porque os outros animais podiam ir vivos ao sacrifício, e os peixes geralmente não, senão mortos; e cousa morta não quer Deus que se lhe ofereça, nem chegue aos seus altares. Também este ponto era muito importante e necessário aos homens, se eu lhes pregara a eles. Oh quantas almas chegam àquele altar mortas, porque chegam e não têm horror de chegar, estando em pecado mortal! Peixes, dai muitas graças a Deus de vos livrar deste perigo, porque melhor é não chegar ao sacrifício, que chegar morto. Os outros animais ofereçam a Deus o ser sacrificados; vós oferecei-lhe o não chegar ao sacrifício; os outros sacrifiquem a Deus o sangue e a vida; vós sacrificai-lhe o respeito e a reverência.

Ah peixes, quantas invejas vos tenho a essa natural irregularidade! Quanto melhor me fora não tomar a Deus nas mãos, que tomá-lo indignamente! Em tudo o que vos excedo, peixes, vos reconheço muitas vantagens. A vossa bruteza é melhor que a minha razão e o vosso instinto melhor que o meu alvedrio. Eu falo, mas vós não ofendeis a Deus com as palavras; eu lembro-me, mas vós não ofendeis a Deus com a memória; eu discorro, mas vós não ofendeis a Deus com o entendimento; eu quero, mas vós não ofendeis a Deus com a vontade. Vós fostes criados por Deus, para servir ao homem, e conseguis o fim para que fostes criados; a mim criou-me para o servir a ele, e eu não consigo o fim para que me criou. Vós não haveis de ver a Deus, e podereis aparecer diante dele muito confiadamente, porque o não ofendestes; eu espero que o hei-de ver; mas com que rosto hei-de aparecer diante do seu divino acatamento, se não cesso de o ofender? Ah que quase estou por dizer que me fora melhor ser como vós, pois de um homem que tinha as mesmas obrigações, disse a Suma Verdade, que «melhor lhe fora não nascer homem»: Si natus non fuisset homo ille. E pois os que nascemos homens, respondemos tão mal às obrigações de nosso nascimento, contentai-vos, peixes, e dai muitas graças a Deus pelo vosso.

Benedicite, cete et omnia quae moventur in aquis, Domino: «Louvai, peixes, a Deus, os grandes e os pequenos», e repartidos em dois coros tão inumeráveis, louvai-o todos uniformemente. Louvai a Deus, porque vos criou em tanto número. Louvai a Deus, que vos distinguiu em tantas espécies; louvai a Deus, que vos vestiu de tanta variedade e formosura; louvai a Deus, que vos habilitou de todos os instrumentos necessários à vida; louvai a Deus, que vos deu um elemento tão largo e tão puro; louvai a Deus, que, vindo a este Mundo, viveu entre vós, e chamou para si aqueles que convosco e de vós viviam; louvai a Deus, que vos sustenta; louvai a Deus, que vos conserva; louvai a Deus, que vos multiplica; louvai a Deus, enfim, servindo e sustentando ao homem, que é o fim para que vos criou; e assim como no princípio vos deu sua bênção, vo-la dê também agora. Amen. Como não sois capazes de Glória, nem de Graça, não acaba o vosso Sermão em Graça e Glória.

Padre António Vieira

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