«Cousas do Tempo»
Conto de Mário de Alencar
185- «COUSAS DO TEMPO»
Para entender a linguagem coloquial da nossa gente moça,
será em breve preciso ter-se à mão um vocabulário de folhas volantes que
acompanhe as aceleradas inovações idiomáticas. Quanto a mim, fico em branco
ouvindo expressões que andam correntes e sem dúvida traduzem ideias. Registro
algumas que me estão lembrando: à beça, baita, batuta, pra burro, é um suco; e
há muitas outras que tais.
Constitui esse vocabulário uma geringonça; mas, ou eu me
engano, ou são as geringonças peculiares a ajuntamentos quotidianos e
restritos, como as escolas e quartéis, ou à gente popular unida em identidade
de profissão ou de vício. Creio também que à linguagem popular não é difícil
descobrir-se uma origem na metáfora, na frequência dos seus utensílios, ou na
corrupção da ignorância. Tem ela ainda um certo pitoresco, que resulta da
própria transparência ou jeito do vocábulo, ou porventura do uso limitado a um
grupo.
Mas ao idioma novo a que me refiro, desde que é geral aos
moços de toda procedência, não quadra a razão de ser das geringonças. Os salões
que eles frequentam assiduamente deviam ser um meio neutralizador ou anulador
de hábitos e cacoetes adquiridos onde a graça se contenta de ser chulice e a
comunicação de ideias se satisfaz com esgares de palavra.
A casaca e o peitilho engomado obrigam ao aprumo do tronco e
ao gesto comedido; e até o corpo que não tenha natural elegância, aparenta-a
sem o pensar. Também ali a voz não ultrapassa o diapasão de surdina; alinha-se
a palavra em harmonia com o timbre e as atitudes; tem compostura, afeiçoa-se à
delicadeza da presença feminina, e enforma espontaneamente em galanteio.
Ora, a geringonça dos moços de hoje não é só deles entre si,
senão deles para elas e delas para eles. Mais os entendem elas do que eu, que
sou velho, ou o homem do povo, que tenha a rudeza da vida simples. Mas o
popular frequentador da Avenida e dos teatros e cinemas, esse conhece também e
pratica a geringonça das moças.
Apagou-se a linha divisória do gesto, da linguagem e até dos
hábitos de salão, como já não há diferença entre o salão e o bonde.
O decote era a concessão convencional que o pudor fazia à
elegância selecta do baile ou consentia à discrição de um camarote em espectáculo
de gala; mas exigia a sombra de um carro e o abrigo de uma pelica; agora desce
pedestremente à rua, e toma o bonde, e senta-se entre gente grosseira e
estranha, e deixa-se ver sem convenção e medida pelos olhos da multidão.
As pernas também já não se escondem, e esqueceram que a
graça e a magia do seu encanto provinham de andarem ocultas. Bastava à
imaginação a possibilidade de descobri-las, e o principal era adivinhar, ou
surpreendê-las a furto, ao acaso de um movimento, e que não as vissem muitos
olhos a um tempo ou não mostrasse a dona gostar de mostrá-las. No gesto
apressado de reescondê-las e no rubor súbito acendido nas faces da dona estava
a delícia da visão misteriosa e breve. Musset não achara poesia nas pernas da
sua andaluza, se elas fossem espetáculo quotidiano, em vez do imprevisto e da
surpresa. Mas a andaluza de Musset usava espartilho, e ao tempo dele as casacas
não usavam em público outro ritmo de movimento que o giro de adejo.
Agora a música dos bailes não tem o compasso de
ondulação suave: chocalha; não deslizam os pés: sapateiam; não se alinham os
corpos em par que revoa, apenas unidos pelo toque leve dos braços: agarram-se,
aferram-se; nem o movimento é composto pela atitude da beleza: os troncos
dobram-se, chocam-se, sacodem-se e pulam, desconjuntam-se e descambam, ou só
remexem, jungidos, em quebros de melopéia ou batuques de cateretê, durante os
quais não raro, para maior efeito, há uma pausa na música e um grito do batuta:
Maricota, sai da chuva! ou estribilho equivalente. E o saracoteio recomeça mais
vivo, num gingo-gingo estonteado e suado de samba.
Não estará aí a explicação daquela geringonça que eu não
entendo? Baita, batuta, à beça, pra burro são flores de jardim moderno, em que
se alternam ou confundem as couves e salsas com os cravos e as rosas. Eu não
desdenho as hortaliças, antes gosto muito delas, mas o meu sentido estético não
as quer senão em horta ou já temperadas no prato de refeição. Repugna-me ver em
lapela uma folha de alface, nem suponho que ninguém aceite para um jarro de
salão um ramo de violetas entremeadas de cebolinha. Tal a impressão que recebo
dessa geringonça em lábios de fina gente moça.
Mário de Alencar
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