«O Espírito do Natal»
Ilustração Bernardo Marques
355- «O ESPÍRITO DO NATAL»
Estava o Senhor Teotónio, que era rico, muito gordo e grande
fumador de charutos, a carregar o carro com os presentes que passara a manhã a
comprar para os filhos, para os sobrinhos e para as muitas pessoas com quem
fazia negócios, quando se aproximou dele um homem pobre, idoso e magro, que
prontamente obteve dele esta resposta:
— Comigo não perca tempo porque não tenho dinheiro trocado,
nem alimento falsos mendigos.
— Mas eu não lhe pedi nada — respondeu o homem idoso
serenamente, com um sorriso que desarmou o Senhor Teotónio e a sua bazófia de
novo-rico.
— Então se não me quer pedir nada, por que motivo está tão
perto de mim enquanto eu carrego o meu carro? — perguntou o Senhor Teotónio
entre duas baforadas de charuto que fizeram o homem idoso e magro tossir
convulsivamente.
— Estou aqui, meu caro senhor — respondeu ele, já refeito da
tosse — para tentar perceber o que as pessoas dão umas às outras no Natal.
— Com que então — concluiu ironicamente o Senhor Teotónio, grande construtor civil com interesses de norte a sul do País — temos aqui um observador! Deve ser, certamente, de uma dessas organizações internacionais que nós pagamos com o nosso dinheiro e que não sabemos bem para que servem.
— Está muito enganado. Mas já agora responda à minha
pergunta: o que é que as pessoas dão umas às outras no Natal? — insistiu o
homem pobre, idoso e magro.
— Bem, se quer mesmo saber, eu digo-lhe. Quem tem posses
como eu pode comprar uma loja inteira, deixando toda a gente feliz, a começar
nos comerciantes e a acabar nas pessoas que vão receber os presentes. Quem é
pobre como você fica a assistir. Percebeu a diferença?
O homem magro e idoso reflectiu uns instantes sobre a
resposta seca e sarcástica do Senhor Teotónio e depois respondeu-lhe com uma
nova pergunta:
— Então e o espírito do Natal?
— O que vem a ser isso do espírito do Natal? — quis saber,
cheio de curiosidade, o Senhor Teotónio.
— O espírito do Natal — respondeu o homem idoso e magro — é
aquilo que nos vai na alma nesta altura do ano e que está muito para além dos
presentes que damos. Para muitas pessoas, o melhor presente pode ser um
telefonema, uma carícia quando se está só.
— Era só o que me faltava agora — desabafou, enfastiado, o
Senhor Teotónio, enquanto arrumava os últimos presentes na mala do automóvel —
ter agora um filósofo, ainda por cima vagabundo, para aqui a debitar sentenças.
O homem magro e idoso afastou-se do carro, mostrando que não
queria esmolas nem qualquer outra coisa que lhe pudesse ser dada pelo Senhor
Teotónio, e encaminhou-se para um grupo de crianças que o esperavam.
Quando o Senhor Teotónio passou por eles no carro, ouviu uma
voz de criança a dizer:
— Vamos, Espírito do Natal, porque hoje ainda temos muito
que fazer.
Dizendo isto, o grupo ergueu-se no ar a esvoaçar com destino
incerto, largando um pó luminoso enquanto ganhava altura no céu cinzento de
Dezembro.
José Jorge Letria
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