«A Oferenda»
A Cidade de Safed, xilogravura de Harry Fenn
372- «A OFERENDA»
Nos idos de 1500, um pobre e ingénuo judeu marrano português
chamado Josué emigrou com a mulher para a cidade santa de Safed, na Galileia.
Fugido da ameaça das fogueiras da inquisição portuguesa, Josué estava radiante
por finalmente poder praticar livremente a religião dos seus antepassados.
Já instalado na Terra Santa, anos mais tarde, ouviu o rabino
falar na sinagoga sobre os lechem hapanim, os “pães de rosto”, que eram
oferecidos na época do Templo Sagrado todas as sextas-feiras, antes do início
do Shabbat. Depois de explicar as várias leis que em tempos antigos
governaram estas oferendas, e de expor os seus significados místicos, o rabino
suspirou profundamente e lamentou que, por causa dos nossos pecados, já não se
podia alegrar Deus com estes pães.
As palavras sentidas do rabino sacudiram a alma do ingénuo
marrano português. Quando chegou a casa, Josué contou tudo à mulher, Clara, e
pediu-lhe que cozesse duas challot2 – o pão especialmente preparado
para o shabbat – na sexta-feira seguinte. Deu-lhe todos os detalhes
que se lembrava das palavras do rabino sobre o “pão de rosto”: a farinha,
contou ele, devia ser peneirada 13 vezes, amassada ainda em estado de pureza e
a massa devia ficar bem cozida no forno. “Deus deve estar cheio de fome,
imagina, depois de tantos séculos sem poder comer estes pães! Vamos passar a
levar-lhe challot todas as sextas-feiras.”, disse Josué cheio de
alegria.
Clara cumpriu a vontade do marido e logo pela manhã da
sexta-feira seguinte, quando Josué acordou, dois belos pães arrefeciam já sobre
um pano imaculado na mesa da cozinha.
Faltando ainda muitas horas para o início do shabbat, o
marrano português correu para a sinagoga, que estava deserta, e abrindo a Santa
Arca disse com todo o fervor: “Oh! Senhor dos Céus, da Terra e de todos os
seres, tem piedade deste teu filho e recebe esta pobre oferenda! Tomai estes
pães e que eles sejam bem recebidos por Ti, como foram as oferendas dos nossos
antepassados.”
Com as mãos trémulas, Josué depositou os pães na Santa Arca
e, olhando em volta para ter a certeza que ninguém o vira, regressou
rapidamente a casa.
Já Josué ia longe quando o shammash (o funcionário
da sinagoga) chegou para preparar o shabbat. Ao abrir a Santa Arca para
conferir os rolos da Torá, deparou com os dois belos e deliciosos pães e logo
imaginou que só podiam ser para si. Algum judeu generoso os deixara em segredo,
para não o envergonhar revelando a todos a sua pobreza, pensou ele.
Ao fim dessa mesma tarde, depois dos serviços religiosos,
Josué dirigiu-se impacientemente à Arca Sagrada para ver se os pães ainda lá
estavam. Quando viu que tinham desaparecido a sua alegria foi imensa. “Deus não
desdenhou a nossa singela oferenda”, disse ele, radiante, à mulher.
E assim prosseguiu durante longos anos: sexta-feira de manhã
Josué levava os dois pães feitos por Clara à sinagoga; e à tarde o shammash levava-os
para casa profundamente agradecido ao seu secreto benfeitor. Ambos se
deliciavam e agradeciam a Deus pelo milagre.
Tudo corria bem até que um dia o judeu português se
preparava para cumprir o mesmo ritual de sempre quando os seus gestos foram
observados pelo rabino, que nessa sexta-feira fora mais cedo para a sinagoga e,
a um canto, preparava silenciosamente o sermão do dia seguinte.
Intrigado, o rabino ouviu a prece de Josué oferecendo os dois pães a Deus. Primeiro ficou em silêncio, mas assim que compreendeu o que se passava, o rabino ficou irado. Finalmente, não se conseguindo conter por mais tempo, dirigiu-se a Josué: “Seu idiota! Que fazes tu? Por acaso pensas que Deus come e bebe como tu? É um pecado terrível imaginar que Deus tem qualidades físicas como os homens. Pensas mesmo que é Deus quem recebe os teus miseráveis pães? É óbvio que é o shammash que os come!”
O rabino gritava ainda, vermelho de raiva, quando o shammash entrou
na sinagoga para cumprir as suas tarefas habituais. O rabino confrontou-o
imediatamente: “Vá, diz lá a este pobre idiota quem é que todas as semanas tira
os dois pães que ele deixa na Arca?!”
O shammash admitiu logo ser ele quem levava os
pães, sem compreender porque razão o rabino estava tão irritado.
Com os olhos encharcados em lágrimas, o marrano português
contou então ao rabino como o seu sermão o inspirara a trazer os pães para a
sinagoga. Acreditava que fazia uma boa acção, mas agora o rabino dizia-lhe que
cometera um grande pecado. Desconsolado e sem saber o que dizer à mulher, Josué
foi para casa.
Pouco tempo depois, entrou na sinagoga um mensageiro de Ari
Ha’Kadosh que se dirigiu ao rabino. Em nome do seu mestre, o mensageiro
disse ao rabino que fosse para casa, se despedisse da família e se preparasse,
porque à hora destinada para o seu sermão de shabbat, na manhã seguinte, a
sua alma teria já partido para o descanso eterno. “Assim anunciaram os Céus”,
disse o mensageiro.
O rabino não queria acreditar na má notícia que ouvira. Sem
perder tempo, foi ter directamente com o Ari Ha’Kadosh tentando saber que
pecado fizera ele para merecer tal destino. O Ari confirmou a mensagem,
acrescentando da forma mais gentil possível: “Ouvi que foi porque acabaste com
um gesto que deleitava o Criador. Desde a destruição do Templo Sagrado que Deus
não tinha uma alegria tão grande quanto aquela que lhe dava o gesto do marrano
português, oferecendo os seus modestos pães do fundo do seu coração. Ao
destruir a sua inocência, selaste o teu destino.”
E assim foi. Inconformado, o rabino dirigiu-se para casa e
despediu-se da família. No dia seguinte, a sua alma partiu antes da hora
marcada para a prédica de shabbat, tal como anunciara o Ari.
Moshe Hagiz
Moshe Hagiz
Sem comentários:
Enviar um comentário