«O Rapaz não Gostava das Mãos»
Sem Título/ Peter Scott
373- «O RAPAZ NÃO GOSTAVA DAS MÃOS»
Talhado em angústia mansa, o rapaz entrou na taberna, pediu
uma garrafa cheia de vinho e regressou à porta, levando o olhar fosco para além
das casas, como se tivesse deixado atrás de si qualquer coisa fundamental ou
viesse acossado por um bicho feroz. Parecia temeroso ou atormentado. Agarrava-se
nas mãos a dor que não cabia dentro de si.
Altarrão e enxuto, vergava um pouco pelos rins, onde a
camisa fraldiqueira e suja lhe saltava das calças derreadas. Tinha cara de
menino assustado.
– Ah vida! – disse para a rua quase num grito.
Devia julgar-se sozinho com a vida para lhe atirar aquela
acusação irada.
Quando reparou que também nós andávamos na mesma liça, quis perceber para quem
falava, olhou à volta e atirou para o monte a sua pergunta:
Para que quer um homem a vida?...
Depois encolheu os ombros com resignação e desdém, indo
sentar-se à ponta do banco encostado à parede. Pegou na garrafa, mirou-a à luz
que vinha da porta e voltou a pousá-la no marmorite do balcão.
Abanava as mãos longas. Pensava que se as não tivesse não
estaria ali tão longe. Pudera vir ao mundo lázaro das duas e andaria agora pela
sua terra, batendo feiras na ganhuça de mendigo.
Era por isso que remirava as mãos com desprezo.
Atirou com o chapéu salgadiço de suor para a nuca, arrancou
o lenço do pescoço e limpou a testa. Fez aquilo para não ficar quieto.
Quando pegou de novo na garrafa teve uma cortesia:
– São servidos?...
Uma escala de vozes respondeu-lhe obrigado!
Então o rapaz limpou a boca com a manga da camisa e começou
a beber. Todos voltámos a cabeça para vê-lo beber. Ele percebeu-o, sentiu que
reparavam nele, coisa que não lhe acontecia há muito tempo. Cheio de brio,
mamou a garrafa até ao fim. Voltou a limpar a boca, estendeu a garrafa ao
taberneiro e mandou-a encher.
– Já agora preparo a cama... Dorme-se melhor em cima de
vinho do que numa esteira...
Largou o chasco e não sorriu. A verdade é que também não lhe
achámos graça.
– Ontem o gajo do automóvel pôs-me umas suíças, o filho da
mãe. Só hoje vi. Cheguei à noite a Bucelas com uns camaradas... Viemos todos
prà vindima do patrão Soisa, o Tóino de Soisa. E o fi lho da mãe do chófer
andou c’a gente às voltas e vai ao fim pede cinquenta malréis. Por uma légua
cinquenta malréis. Se calhar ao Soisa leva dez... Povo a roubar povo, não há coisa
mais feia nem coisa mais certa...
Num repente calou-se assustado. Fez agulha à conversa:
– A gente bebe vinho, mas não bebe juízo... O filho da mãe
do chófer há-de gastar o dinheiro que roubou à nossa desgraça com remédios de
botica... Não lhe quero outro mal... O meu mal é outro...
Meteu a garrafa à boca sem a gala de se limpar. Levou-a de
um trago até meio.
– Andar quase dois dias de camineta, a butes e de comboio
para arranjar serviço... E viva! Na minha terra um homem quer matar o corpo e
não encontra.
Não percebo porquê, encarou comigo. Vi que os olhos baços de
tristeza se iluminavam de raiva.
– Terra pobre há-de dizer o senhor... Qual nada, qual quê!
Há lá lavradores com terras que nem condados. Metem-lhe dentro três ou quatro
feiras-atadeiras e aquilo é um bafo. A gente, os homens, acarretam lenha como
as mulheres. Vão jornas a dezoito malréis. E é para quem quer... Quem não quer
é madraço. Pra quem não quer há lazeira ou cadeia...
Voltou a sentar-se.
– Trabalho de mulheres prá gente – repetiu duas vezes com
escárnio. – Pois que fiquem lá as mulheres; talvez elas um dia sejam tantas que
acabem por capá-los.
Se a minha mão tivesse capado o meu pai não tinha eu vindo
ao mundo...
Não gostou da ideia e pô-la mais ao jeito:
– Mais valia que a minha mãe me tivesse desfeito a cabeça
numa parede quando me viu nascer...
Na madorra do pranto seco, suspirou: – Ah vida!...
– Vossemecês não gostam da gente... A gente vem de tão longe
tirar o trabalho aos que cá moram. Está certo!...
O vinho começava a trocar-lhe as voltas. Enrolavam-se-lhe as
palavras e as ideias.
– Está certo, não! Porque não há coisa mais desgraçada do
que andar longe da nossa terra a padecer... Os padecimentos na nossa terra doem
menos; saram mais depressa. Na minha terra não havia nenhum chófer que me
levasse cinquenta malréis por meia légua. É o mesmo que roubar um cego...
Voltou a abanar as mãos.
– Vossemecê gosta das suas mãos?!... Diga lá, homem!
– As mãos nunca me fizeram mal...
– E bem?!
– Faziam-me falta...
– Pois a mim, não. Se não tivesse mãos, nunca abalava da
minha terra.
Deixava-me morrer de fome, mas não abalava. Nunca abalava da minha terra...
Pedia esmola. Os lavradores sempre me davam alguma coisa. Não me mandavam
apanhar lenha... Vossemecê já viu um homem a apanhar lenha?... É pior que ser
mulher magana em terra de soldados.
E cuspiu no chão da taberna com raiva de provocar um
terramoto.
Alves Redol
Alves Redol
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