367- «O MELHOR PRESENTE DE NATAL DO MUNDO»
A todos quantos, de ambos os lados do conflito,
tomaram parte na trégua de Natal de 1914.
Vi-a numa loja de velharias em Bridport. Era uma escrivaninha de tampo
corrediço, e o vendedor afirmava tratar-se de uma peça de carvalho do início do
século XIX. Havia anos que procurava uma escrivaninha deste estilo, mas nunca
tinha encontrado uma que pudesse comprar. Esta não estava em bom estado: a
tampa mostrava várias rachadelas, uma das pernas estava mal consertada, e tinha
partes queimadas.
Não era cara, e pensei que eu próprio poderia tentar
restaurá-la. Seria um risco, um desafio, mas era a minha única oportunidade de
possuir uma escrivaninha de tampo corrediço. Paguei o que o homem pediu, e
levei-a para a minha oficina, na parte de trás da garagem. Comecei a
restaurá-la na véspera de Natal, sobretudo devido à quantidade de visitas que
tinha em casa. Faziam muito barulho e eu queria encontrar algum sossego.
Abri o tampo e puxei as gavetas. Cada uma delas anunciava um
desafio maior do que eu tinha imaginado. O verniz estava a descascar um pouco
por todo o lado: parecia que a peça tinha sido salva de um naufrágio. Era
evidente que esta escrivaninha tinha atravessado fogo e água. A última gaveta
estava empenada e tentei abri-la com cuidado. Mas os meus esforços não
resultaram e tive de usar toda a força que pude. Bati-lhe com o punho e logo
ela se abriu, revelando um compartimento secreto. Este continha uma pequena
caixa de folha, com uma folha de papel pautada, na qual a mão trémula de alguém
tinha escrito: “A última carta de Jim, recebida a 25 de Janeiro de 1915. Para
ser enterrada comigo, quando eu morrer.”
Soube, logo que o fiz, que não deveria abrir a caixa, mas a curiosidade levou a
melhor sobre os meus escrúpulos. Como sempre.
Dentro da caixa estava um envelope, endereçado a Mrs Jim
Macpherson, 12 Copper Beeches, Bridport, Dorset. Peguei na carta e abri-a.
Estava escrita a lápis e datava de 26 de Dezembro de 1914.
Querida Connie
Escrevo-te, feliz, porque acaba de acontecer algo de
maravilhoso que quero contar-te desde já. Ontem de manhã, encontrávamo-nos
todos nas trincheiras. Era Dia de Natal e estava uma das manhãs mais bonitas
que vira até então, tranquila e gelada como uma manhã de Natal deve ser.
Gostava de poder dizer-te que fomos nós a ter a iniciativa.
Mas a verdade, envergonho-me de to dizer, foi que os Alemães é que tomaram a
iniciativa. Primeiro, alguém viu uma bandeira branca a ondular nas trincheiras
do inimigo. Depois, alguém gritou:
— Feliz Natal! Feliz Natal!
Quando nos tínhamos recomposto da surpresa, alguns de nós
retribuíram:
— Feliz Natal para vocês também!
Pensei que tudo ficaria por ali. Todos pensámos, aliás. Mas,
de repente, vimos um deles, no seu sobretudo cinzento, a agitar uma bandeira
branca.
— Não atirem, rapazes! — alguém gritou.
E logo vimos mais Alemães, uns a seguir aos outros, a
aproximar-se da nossa trincheira.
— Mantenham-se em baixo — ordenei aos meus homens. — É uma
armadilha.
Mas não era tal.
Um dos Alemães agitava uma garrafa no ar.
— É Dia de Natal. Temos cerveja e salsichas. Querem
juntar-se a nós?
Por esta altura, já dezenas deles se dirigiam até nós,
atravessando a terra de ninguém que nos separava. Nenhum deles transportava
armas.
O soldado Morris foi o primeiro a mexer-se.
— Vamos lá, rapazes! De que estamos à espera?
Ninguém conseguiu impedi-los. Eu era o oficial e devia ter
travado tudo aquilo imediatamente. Mas nem sequer me ocorreu. Homens de ambos
os lados, vestidos com sobretudos cinzentos ou com uniformes caqui, caminhavam
em direcção uns aos outros, e eu era um deles. Fazia parte daquilo. No meio da
guerra, celebrávamos a paz.
Não podes imaginar, querida Connie, o que senti, quando
olhei, nos olhos, o oficial alemão que se aproximava de mim, com a mão
estendida.
— O meu nome é Hans Wolf — disse, segurando a minha mão com
firmeza e afabilidade. — Sou de Dusseldorf e toco violoncelo na orquestra da
cidade. Feliz Natal!
— Sou o Capitão Jim Macpherson — respondi. — Sou professor
em Dorset, no leste de Inglaterra. Feliz Natal para si, também!
— Dorset — repetiu. — Conheço muito bem esse lugar.
Partilhámos a minha ração de aguardente e a excelente
salsicha dele. E falámos, falámos sem parar. O inglês dele era excelente, mas
acontece que nunca tinha posto os pés em Dorset. Tudo o que sabia sobre
Inglaterra tinha-o aprendido na escola e nos livros que lia em inglês. O seu
escritor favorito era Thomas Hardy,e o seu livro preferido Far from the Madding
Crowd. Naquela terra de ninguém, conversámos sobre Bathsheba, Gabriel Oak,
Sergeant Troy e Dorset. Tinha mulher e um filho, com seis meses de idade.
Enquanto olhava à minha volta, só via manchas de cor cinzenta e caqui a fumar,
a rir, a comer e a beber. Hans Wolf e eu partilhámos o que restava do teu
óptimo bolo de Natal.
Segundo ele, o teu maçapão era o melhor que alguma vez
provara. Concordei. Concordávamos em tudo, Connie, e ele era meu inimigo. Nunca
houvera uma festa de Natal assim.
Alguém trouxe uma bola de futebol. Os sobretudos foram
despidos e transformados em postes de balizas. O jogo começou. Hans Wolf e eu
assistimos e encorajámos os jogadores, aplaudindo e batendo com os pés no chão,
para afastarmos o frio. Houve um momento em que vi a nossa respiração
misturar-se. Ele viu o mesmo e sorriu.
— Jim Macpherson — disse, passado um bocado — penso que é
assim que esta guerra devia ser resolvida. Como um jogo de futebol. Ninguém
morre num jogo de futebol. Ninguém fica órfão. Nenhuma mulher fica viúva.
— Prefiro o críquete — disse-lhe. — Assim, os Ingleses
ganhariam.
Rimo-nos da minha piada e assistimos ambos ao jogo. Pena-me
dizer que os Alemães ganharam 2-1. Mas Hans Wolf comentou, com generosidade,
que o nosso golo fora mais bem marcado do que o deles.
Quando o jogo acabou, já há muito tinham desaparecido a
cerveja, o bolo, a aguardente e as salsichas. Desejei felicidades a Hans e fiz
votos de que voltasse a ver a família em breve, de que a guerra acabasse
depressa, e de que todos regressássemos a casa sãos e salvos. Respondeu-me:
— Penso que é o que todos os soldados querem, sejam Alemães
ou Ingleses. Tome cuidado consigo, Jim Macpherson. Nunca o esquecerei, nem
esquecerei este momento.
Fez-me continência e afastou-se, devagar, como que
involuntariamente. Virou-se para acenar, uma vez mais, e logo se transformou
num elemento mais, entre as centenas de homens vestidos de cinzento, que
regressavam às suas trincheiras.
Nessa noite, ouvimo-los entoar um belo cântico de Natal,
Noite Feliz. Os nossos rapazes responderam com Enquanto os pastores observavam.
Trocámos cânticos durante mais algum tempo e depois calámo-nos. Foi um momento
de paz e boa vontade, que recordarei com carinho enquanto viver.
Querida Connie, no Natal do ano que vem, esta guerra não
será mais do que uma recordação vaga e terrível. Sei, por tudo o que aconteceu
hoje aqui, o quanto ambos os exércitos desejam a paz. Em breve estaremos de
novo juntos, tenho a certeza.
O teu querido Jim
Dobrei a carta e coloquei-a de novo no envelope. Não contei
a ninguém o meu achado: guardei para mim mesmo a vergonha da minha intrusão.
Penso que foi este sentimento de culpa que me manteve toda a noite acordado. Na
manhã seguinte, já sabia o que devia fazer. Apresentei uma desculpa qualquer e
não fui à igreja com o resto da família. Guiei até Bridport, que ficava apenas
a uns quilómetros dali. Perguntei a um rapaz, que passeava o cão, onde ficava a
casa.
O número 12 não passava de uma concha vazia, com um telhado
em ruínas e as janelas entaipadas. Toquei na casa ao lado e perguntei se sabiam
o paradeiro de Mrs Macpherson. Um homem de idade, em pantufas, respondeu
afirmativamente. Disse que era uma senhora amorosa, um pouco confusa, o que era
normal, dado que tinha 101 anos. Estava em casa quando esta se incendiou.
Ninguém sabia como o incêndio começara, mas pensavam que deveriam ter sido as
velas. A senhora usava velas em vez de electricidade, porque achava que a
electricidade era demasiado cara. O bombeiro tinha-a salvo a tempo. Agora vivia
num lar chamado Burlington House, na estrada de Dorchester, do outro lado da
cidade.
Encontrei Burlington House com facilidade. Havia serpentinas
de papel no corredor e uma árvore de Natal iluminada estava montada num canto,
com um anjinho no topo. Disse que era um amigo de Mrs Macpherson e que viera
trazer-lhe um presente de Natal. Podia ver, através da porta envidraçada da
sala que estavam todos com chapéus de papel e a cantar Good King Wenceslas. A
Directora também usava um chapéu e ficou contente por me ver. Até me ofereceu
uma empada de carne picada. Depois conduziu-me ao quarto de Mrs Macpherson.
— Mrs Macpherson não está na sala com os outros, porque hoje
sente-se bastante confusa. Não tem família e ninguém a visita. Tenho a certeza
de que vai gostar muito de o ver.
Conduziu-me até uma estufa, cheia de cadeiras de palhinha e
vasos com plantas, e deixou-me a sós com Mrs Macpherson. Esta encontrava-se
sentada numa cadeira de rodas, com as mãos no regaço. O seu cabelo fino, branco
e prateado, estava apanhado num rolo. Contemplava o jardim, absorta.
— Olá! — saudei.
Virou a cabeça e olhou-me com um olhar vago.
— Feliz Natal, Connie! — continuei. — Encontrei isto. Penso
que é seu.
Enquanto eu falava, os olhos dela nunca se desviaram da
minha cara. Abri a caixinha de folha e dei-lha. Os olhos dela iluminaram-se num
reconhecimento do objecto e a sua face irradiou uma felicidade súbita.
Falei-lhe da escrivaninha, de como a encontrara. Creio que não me ouviu. Ficou
calada durante algum tempo, enquanto acariciava docemente a carta com os dedos.
De repente, pegou na minha mão. Tinha os olhos marejados de
lágrimas.
— Bem me disseste que vinhas pelo Natal, querido. E eis-te
aqui, o melhor presente de Natal do mundo. Vem para perto de mim e senta-te,
meu querido Jim.
Sentei-me ao lado dela e beijou-me a face.
— Lia constantemente a tua carta. Era como se ouvisse a tua
voz dentro da minha cabeça. Era uma maneira de sentir-te comigo. E agora estás
mesmo. Agora que voltaste, podes ler a carta tu próprio. Queres lê-la? Só quero
ouvir a tua voz de novo, Jim. Depois podemos tomar chá.
Fiz-te um belo bolo de Natal em maçapão. Sei o quanto adoras
maçapão.
Michael Morpurgo
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