354- «VIAGENS NA MINHA TERRA»
Capítulo XIII
Dos frades em geral. - O frade moralmente considerado,
socialmente e artisticamente. - Prova-se que é muito mais poético o frade que o
barão. - Outra vez D. Quixote e Sancho Pança. - Do que seja o barão, sua
classificação e descrição lineana. - História do Castelo do Chucherumelo. -
Erro palmar de Eugénio Sue; mostra-se que os jesuítas não são a cólera-morbo, e
que é preciso refazer o Judeu Errante. - De como o frade não entendeu o nosso
século nem o nosso século ao frade. - De como o barão ficou em lugar do frade,
e do muito que nisso perdemos. - Única voz que se ouve no atual deserto da
sociedade; os barões a gritar contos de réis. - Como se contam e como se pagam
os tais contos. - Predileção artística do A. pelo frade: confessa-se e
explica-se esta predileção.
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Frades... Frades... Eu não gosto de frades. Como nós os vimos ainda os deste século, como nós os entendemos hoje, não gosto deles, não os quero para nada, moral e socialmente falando.
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Frades... Frades... Eu não gosto de frades. Como nós os vimos ainda os deste século, como nós os entendemos hoje, não gosto deles, não os quero para nada, moral e socialmente falando.
No ponto de vista artístico porém o frade faz muita falta.
Nas cidades, aquela figuras graves e sérias com os seus
hábitos talares, quase todos pitorescos e alguns elegantes, atravessando as
multidões de macacos e bonecas de casaquinha esguia e chapelinho de alcatruz
que distinguem a peralvilha raça europeia - cortavam a monotonia do ridículo e
davam fisionomia à população.
Nos campos o efeito era ainda muito maior; eles
caracterizavam a paisagem, poetizavam a situação mais prosaica de monte ou de
vale; e tão necessárias, tão obrigadas figuras eram em muito desses quadros,
que sem elas o painel não é já o mesmo.
Além disso o convento no povoado e o mosteiro no ermo
animavam, amenizavam, davam alma e grandeza a tudo; eles protegiam as árvores,
santificavam as fontes, enchiam a terra de poesia e de solenidade.
O que não sabem nem podem fazer os agiotas barões que os
substituíram.
É muito mais poético o frade que o barão.
O frade era, até certo ponto, o Dom Quixote da sociedade
velha.
O barão é, em quase todos os pontos, o Sancho Pança da
sociedade nova.
Menos na graça...
Porque o barão é o mais desgracioso e estúpido animal da
criação.
Sem excetuar a família asinina que se ilustra com
individualidades tão distintas como o Ruço do nosso amigo Sancho, o asno da
Pucela de Orleans e outros.
O barão (onagrus-baronis de Linn, l'âne baron de Buf.) é uma
variedade monstruosa engendrada na burra de Balaão, pela parte essencialmente
judaica e usurária de sua natureza, em coito danado com o urso Martinho do
Jardim das Plantas, pela parte franquinótica sordidamente revolucionária de seu
caráter.
O barão é pois usualmente revolucionário, e revolucionamente
usurário.
Por isso é zebrado de riscas monárquico-democráticas por
todo o pêlo.
Este é o barão verdadeiro e puro-sangue; o que não tem estes
caracteres é espécie diferente, de que aqui não se trata.
Ora, sem sair dos barões e tornando aos frades eu digo: que
nem eles compreenderam o nosso século, nem nós o compreendemos a eles...
Por isso brigamos muito tempo, afinal vencemos nós, e
mandamos os barões a expulsá-los da terra. No que fizemos uma sandice como
nunca se fez outra. O barão mordeu no frade, devorou-o ... e escouceou-nos a
nós depois.
Como havemos agora de matar o barão?
Porque este mundo e a sua história é a história do
"castelo de Churumelo". Aqui está o cão que mordeu no gato, que matou
o rato, que roeu a corda, etc. etc.: vai sempre assim seguindo...
Mas o frade não nos compreendeu a nós, por isso morreu, e
nós não compreendemos o frade, por isso fizemos os barões de que havemos de
morrer.
São a moléstia deste século; são eles, não os jesuítas, a
cólera morbo da sociedade atual, os barões. O nosso amigo Eugénio Sue errou de
meio a meio no Judeu Errante que precisa refeito.
Ora o frade foi quem errou primeiro em nos não compreender a
nós, ao nosso século, às nossas inspirações e aspirações: com o que falsificou
sua posição, isolou-se da vida social, fez da sua morte uma necessidade, uma
coisa infalível e sem remédio. Assustou-se com a liberdade que era sua amiga,
mas que o havia de reformar, e uniu-se ao despotismo que o não amava senão
relaxado e vicioso, porque de outro modo não lhe servia nem o servia.
Nós também erramos em não entender o desculpável erro do
frade, em lhe não dar outra direção social, e evitar assim os barões, que é
muito mais daninho bicho e mais roedor.
Porque, desenganem-se, o mundo sempre assim foi e há de ser.
Por mais belas teorias que se façam, por mais constituições que se comece, o
status in statu forma-se logo: ou com frades ou com barões ou com
pedreiros-livres, se vai pouco a pouco organizando uma influência distinta,
quando não contrária, às influências manifestas e aparentes do grande corpo
social. Esta é a oposição natural do Progresso, o qual tem a sua oposição como
todas as coisas sublunares; esta corrige saudavelmente, às vezes, e modera sua
velocidade, outras a empece com demasia e abuso, mas enfim é uma necessidade.
Ora eu, que sou ministerial do Progresso, antes queria a
oposição dos frades que a dos barões. O caso estava em saber conter e
aproveitar.
O Progresso e a liberdade perdeu, não ganhou.
Quando me lembra tudo isto, quando vejo os conventos em
ruínas, os egressos a pedir esmola e os barões de berlinda, tenho saudades dos
fardes - não dos frades que foram, mas dos que podiam ser.
E sei que me não enganam poesias; que eu reajo fortemente
com uma lógica inflexível contra as ilusões poéticas em se tratando de coisas
graves.
E sei que me não namoro de paradoxos, nem sou destes
espíritos de contradição desinquieta que suspiram sempre pelo que foi, e nunca
estão contentes com o que é.
Não, senhor: o frade, que é patriota e liberal na Irlanda,
na Polónia, no Brasil, podia e devia sê-lo entre nós; e nós ficávamos muito
melhor do que estamos com meia dúzia de clérigos de requiem para nos dizer
missas; e com duas grosas de barões, não para a tal oposição salutar, mas para
exercer toda a influência moral e intelectual da sociedade - porque não há de
outra cá.
E senão digam-me: onde estão as universidades, e o que faz
essa que há, senão dar o seu grauzito de bacharel em leis e em medicina? O que
escreve ela, o que discute, que princípios tem, que doutrinas professa, quem
sabe ou ouve dela senão algum eco tímido e acanhado do que noutra parte se faz
ou diz?
Onde estão as academias?
Que palavra poderosa retine nos púlpitos?
Onde está a força da tribuna?
Que poeta canta tão alto que o oiçam as pedras brutas e os
robres duros desta selva materialista a que os utilitários nos reduziram?
Se excetuarmos o débil clamor da imprensa liberal já meio
esganada da polícia, não se ouve no vasto silêncio deste ermo senão a voz dos
barões gritando contos de réis.
Dez contos de réis por um eleitor!
Mais duzentos contos pelo tabaco!
Três mil contos para a conversão de um anfiguri!
Cinco mil contos para as estradas dos aeronautas!
Seis mil contos para isto, dez mil contos para aquilo!
Não tardam a contar por centenas de milhares.
Contar a eles não lhes custa nada.
A quem custa é a quem paga para todos esses balões de papel
- a terra e a indústria.
Este capítulo deve ser considerado como introdução ao
capítulo seguinte, em que entra em cena Frei Dinis, o guardião de S. Francisco
de Santarém.
Já me disseram que eu tinha o génio frade, que não podia
fazer conto, drama, romance sem lhe meter o meu fradinho.
O Camões tem um frade: Frei José Índio;
A Dona Branca três, Frei Soeiro, Frei Lopo e S. Frei Gil -
faz quatro.
A Adosinda tem um ermitão, espécie de frade - cinco;
Gil Vicente tem outro - isto é, verdadeiramente não tem
senão meio frade, que é André de Resende, de mais a mais, pessoa muda - cinco e
meio;
O Alfageme três quartos de frade, Froilão Dias, chibato da
Ordem de Malta - seis frades e um quarto;
Em Frei Luís de Souza, tudo são frades; vale bem nesta
computação, os seus três, quatro, meia dúzia de frades - são já doze e quarto;
Alguns, não eu, querem meter nesta conta o Arco de Santana,
em que há bem dois fardes e um leigo;
E aqui tenho eu às costas nada menos que quinze frades e
quarto.
Com este Frei Dinis é um convento inteiro.
Pois senhores, não sei que lhes faça; a culpa não é minha.
Desde mil cento e tantos que começou Portugal, até mil oitocentos trinta e
tantos que uns dizem que ele se restaurou, outros que o levou a breca, não sei
o que se passasse ou pudesse passar nesta terra, coisa alguma pública ou
particular, em que o frade não entrasse.
Para evitar isto, não há senão usar da receita que vem
formulada no capítulo 5 desta obra.
Faça-o quem gostar; eu não, que não quero nem sei.
Almeida Garrett
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