«A Batalha de Natal»
Conto de Jutta Modler
369- «A BATALHA DE NATAL»
— Só mais seis dias — disse Neli.
Enquanto a filha tentava assobiar Noite Feliz, a mãe
repetiu, pensativa, numa voz que não soava alegre:
— Ainda seis dias.
Após uma curta pausa, prosseguiu, suspirando:
— Se tudo já tivesse passado!
Com o assobio suspenso no ar, Neli olhou para a mãe com ar
estupefacto:
— Não estás contente?
— Claro que sim, mas já estou pelos cabelos com esta
agitação toda!
Como Neli não tinha aulas à tarde, foi patinar com uma
amiga. Ao cair da noite, dirigiu-se ao supermercado onde a mãe trabalhava.
Havia tanto movimento que o lugar mais parecia uma colmeia. A mãe estava
sentada numa cadeira giratória, diante de uma das seis caixas registadoras. Os
produtos chegavam-lhe num tapete rolante. Enquanto a mão direita marcava os
números no teclado, a mão esquerda rodava as embalagens para que a máquina
pudesse ler os códigos. Finda a operação, os produtos eram colocados, um a um,
no carrinho de compras. Quando acabava de marcar tudo, a mão direita carregava
na tecla do total e rasgava o talão, enquanto a esquerda afastava o carro cheio
e puxava o próximo, vazio, para junto dela.
— Que bem fazes isso — dissera-lhe Neli uma vez. — Eu faria
tudo devagar e, ainda por cima, metade saía mal.
— Ora — dissera a mãe a rir. — É uma questão de treino.
Quando comecei, também não era assim tão despachada. Não encontrava a etiqueta
com o preço e, muitas vezes, carregava nas teclas erradas. Como tinham de
esperar, as pessoas resmungavam. Agora já quase consigo fazer isto
automaticamente.
— Como um robô! — Neli riu-se.
E se tivesse um robô como mãe? Nunca teria dores de cabeça,
nem à noite estaria tão cansada. Mas um robô não tem coração e, por isso, Neli
preferia a mãe tal como era, mesmo quando, em certas noites, quase nem
conseguia falar de tão cansada!
Só mais quatro dias.
Só mais três.
As filas nas caixas eram cada vez mais longas. As pessoas
abasteciam-se de comida como se o Natal durasse meio ano. Com um ruído
sibilante, as portas automáticas abriam e fechavam, abriam e fechavam. A mãe
sentia nas costas a corrente de ar e os cartões pendurados no tecto balançavam
de um lado para o outro.
Um sino de Natal, por cima da cabeça da mãe, tinha escrito a vermelho:
Promoção: Bombons, 250 gr, a preço especial.
Perto dele balançava um anjo de papel com uma faixa nas mãos, como nas igrejas, mas onde não estava escrito Paz na terra aos homens de boa vontade, mas sim Fiambre para o Natal a 15,80€/kg.
Os altifalantes debitavam música de Natal:
Noite feliz…
Cabeça de anho
Noite feliz…
Descafeinado
Papel higiénico de três folhas
O Senhor…
Lenços com monograma
Mostarda
Nasceu em Belém…
A mãe suspirava e, com um movimento rápido, limpava o suor
do lábio com as costas da mão. Os clientes, impacientes, esperavam, apoiando-se
ora numa, ora na outra perna. De olhar ausente, nem olhavam para a senhora da
caixa, pensando apenas no regresso a casa com os sacos pesados e o eléctrico
cheio.
Ufa!
Só mais três dias, e acabaria tudo.
— Vou fazer um jantar como o do ano passado — disse a mãe, à
noite, virando-se para Neli. — Patê em folhas de alface, porco assado, batatas
fritas, feijão e, para sobremesa, creme de chocolate de lata com pêras.
No dia 24 de Dezembro, a loja só estava aberta até às quatro
horas da tarde. Em seguida, os empregados podiam comprar, com um desconto de
15%, os produtos que tinham sobrado. A mãe de Neli achava que valia a pena e,
por isso, tinha guardado as compras maiores para essa altura: uma pasta escolar
para Neli, uma boneca, lápis de cor, um anoraque para o pai, e a comida para a
ceia de Natal.
Na sala do pessoal, houve um lanche para todos os
empregados.
— A batalha de Natal foi mais uma vez vencida — alegrou-se o
chefe do pessoal, que proferiu mais umas palavras elogiosas.
Depois foram servidos pãezinhos com fiambre e um copo de
vinho a cada um.
Após o lanche, a mãe de Neli deixou ficar os gordos sacos de
compras esquecidos na sala do pessoal. Só reparou quando já estava na paragem
do autocarro. “As minhas prendas! Todas aquelas coisas boas para a ceia!”,
pensou assustada.
Mas a loja já estava fechada e, antes do dia 27, não voltava
a abrir. Chegou a casa de mãos vazias.
Nessa noite, apesar de tudo, festejaram o Natal. O pai
acendeu as velas da árvore de Natal e Neli recitou um poema. Só se lembrou das
duas primeiras estrofes e depois encravou, mas a mãe achou-o muito bonito e o
pai nem reparou que ainda continuava. O jantar foi mais curto do que o
planeado. Por sorte, a mãe já tinha comprado o assado e havia batatas em casa,
mas não houve entrada nem sobremesa. Trincaram nozes e comeram maçãs.
— Assim, não fico com o estômago tão pesado como no ano
passado — disse o pai. — Comidas pesadas não me caem bem.
Também não havia muito que desembrulhar.
Por isso, sobrou tempo. Muito tempo.
Neli foi buscar o jogo “Memory” que recebera no Natal
anterior. Durante o ano inteiro, esperara, em vão, todos os domingos, que
alguém tivesse tempo para jogar com ela.
Agora, os pais tinham tempo.
O pai nunca tinha jogado “Memory”. Ao fim de algum tempo, Neli
já tinha encontrado sete pares de cartas, a mãe três, e o pai, que geralmente
queria ganhar sempre, procurava constantemente no sítio errado.
Tentava alguns truques, pondo, sem ninguém dar conta,
migalhinhas de pão em cima das cartas que tinha decorado, ou pousava as mãos na
mesa, de forma a que o polegar indicasse a direcção em que estava uma
determinada carta. Mas Neli descobriu-lhe a jogada. Jogaram mais duas ou três
vezes e o pai não se zangou por perder sempre. Depois, ainda jogaram o jogo do
assalto.
À meia-noite, o pai apagou a luz e ficaram a olhar pela
janela. A neve reflectia uma luz clara e ouviam-se os sinos a tocar.
— A esta hora, há quase dois mil anos, nasceu Jesus — disse
a mãe, e Neli reparou que, afinal, a mãe estava contente por ser Natal.
Ao ir para a cama, Neli disse:
— Este foi um Natal muito bonito.
— A sério? — perguntou a mãe, admirada. — Mas não houve ceia
nem prendas quase nenhumas.
— Mas houve muito tempo — respondeu Neli.
Jutta Modler
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