«É que somos muito pobres»
Conto de Juan Rulfo
535- «É QUE SOMOS MUITO POBRES»
[Excerto]
Aqui vai tudo de mal a pior. Na semana passada morreu a
minha tia Jacinta, e no Sábado, quando já a tínhamos enterrado e começava a
abalar-nos a tristeza, começou a chover como nunca. Ao meu papá isso irritou-o,
porque toda a colheita de cevada estava a secar na eira. E o aguaceiro chegou
de repente, em grandes ondas de água, sem sequer nos dar tempo para esconder
nem que fosse um pequeno molho; a única coisa que pudemos fazer, todos os da
minha casa, foi ficarmos arrimados uns aos outros debaixo do telheiro, vendo
como a água fria que caía do céu queimava aquela cevada tão recém-cortada.
E só ontem, quando a minha irmã Tacha acabava de fazer doze
anos, soubemos que a vaca que o meu pai lhe ofereceu para o dia do seu
aniversário tinha-a levado o rio. (...) Foi ali que soubemos que o rio tinha
levado a Serpentina, a vaca que era da minha irmã Tacha porque o meu papá lha
ofereceu no dia do seu aniversário e que tinha uma orelha branca e outra
avermelhada e muito bonitos olhos. (...) Nunca vi a Serpentina tão atarantada.
O mais certo é ter vindo ainda a dormir para se deixar matar assim sem mais nem
menos. A mim muitas vezes tocou-me acordá-la quando lhe abria a porta do
curral, porque senão, por vontade dela, ali estaria o dia inteiro com os olhos
fechados, bem quieta e suspirando, como se ouvem suspirar as vacas quando
dormem.
E aqui deve ter acontecido isso, adormeceu. Talvez se tenha
lembrado de acordar ao sentir que aquela água pesada lhe batia nas costelas.
(...) Talvez tenha bramado pedindo que a ajudassem.
Bramou só Deus sabe como.
Eu perguntei a um senhor, que viu quando o rio a arrastava,
se não tinha visto também o bezerrinho que andava com ela. Mas o homem disse
que não sabia se o tinha visto. (...) O problema que há na minha casa é o que
poderá acontecer no dia de amanhã, agora que a minha irmã Tacha ficou sem nada.
Porque o meu papá com muito trabalho tinha conseguido a Serpentina, ainda ela
era uma vitelinha, para dar à minha irmã, a fim de que ela tivesse um
capitalzinho, e não se tornasse puta como fizeram as minhas outras duas irmãs,
as maiores. (...)
A minha mamã não sabe porque é que Deus a castigou tanto
dando-lhe umas filhas assim, quando na sua família, da sua avó para cá, nunca
houve gente má. (...) Quem sabe de onde lhes viria, a esse par de filhas suas,
aquele mau exemplo. (...) E cada vez que pensa nelas, chora e diz: «Que Deus as
ampare às duas.»
Mas o meu pai alega que aquilo já não tem remédio. A
perigosa é a que fica aqui, a Tacha, que vai como tronco de pinheiro, cresce e
cresce e já tem uns princípios de seios que prometem ser como os das suas irmãs
(...) E a Tacha chora ao sentir que a sua vaca não voltará porque lha matou o
rio. (...) Pela sua cara correm jorros de água suja como se o rio se tivesse
metido dentro dela.
Eu abraço-a tentando consolá-la, mas ela não percebe. (...)
Da sua boca sai um ruído semelhante ao que se arrasta pelas margens do rio
(...) O sabor a podre que vem de lá salpica a cara molhada da Tacha e os dois
peitinhos dela mexem-se de cima para baixo sem parar como se de repente
começassem a inchar para começarem a trabalhar pela sua perdição.
Juan Rulfo
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