«O Homem das Gaivotas»
Lamento da Gaivota/ Graça Morais
528- «O HOMEM DAS GAIVOTAS»
[Excerto]
Mesmo sem vê-las, o homem sabe que as gaivotas ali estão,
velando no alto do prédio que há defronte, aprumadas, parecendo olhar o mar lá
muito ao longe, em direcção ao qual o sol declina. Vêm pôr-se ali todas as
tardes, perfeitamente alinhadas, levantando ocasionalmente os pescoços brancos
para grasnarem, aparentando indiferença pela janela de onde o homem
habitualmente as olha desconfiado desde que passou a reparar no chão quando
caminha, encontrando aí, desenhados a sombra, os vultos de gaivotas que sempre
parecem estar velando sobre a sua cabeça, planando com as asas abertas alguns
metros acima.
Embora o senso comum garanta que estas deambulações das
gaivotas em terra são sinal de tempestades no mar, o homem sabe que as aves que
lhe vêm guardar o horizonte não fogem à fúria de qualquer elemento, antes aqui
são convocadas pela sua voz grossa, tonitroante, e pelos versos que recita
enquanto traça no chão da casa um percurso já habitual, entre a janela de onde
avista as gaivotas e a estante dos livros, de lá para cá, de cá para lá, uma e
outra vez, enquanto mede com passos miúdos os silêncios que devem sublinhar as
palavras, entre o momento em que o som de uma se extingue e o instante em que a
seguinte deve ser dita. Nisto reside, crê o homem, o segredo da poesia. O
silêncio não é um intervalo, antes a chave que transforma as palavras em
música. Não. Música não é aquilo; as palavras que diz e as pausas que as
preparam hão-de ser alguma coisa próxima do subtil sussurro que os astros
produzem enquanto rodopiam no vácuo, uma linguagem que, sabe agora o homem, a
própria natureza identifica como algo seu, que as plantas e os animais escutam
e compreendem.
Por isso o homem não precisa de ir à janela para saber que
as gaivotas lá estão fora, esperando a poesia que há-de dizer, cativas há muito
do som que produz a sua voz escapando de casa após ricochetear nas paredes da
sala exígua. De quando em vez, as aves grasnam como cães que regressam a casa
e, do lado de fora da porta, arranham a madeira para sinalizar que já ali
estão.
Entretanto, escurece. E, pela luz que vê pela fresta das
cortinas, o homem sabe que vem aí uma dessas noites. O dia esteve quente como
este ano ainda se não tinha visto e, agora que o crepúsculo se instalou, a
chuva começou a cair em gotas hesitantes e grossas, libertando da terra o odor
que dizem ser o perfume do chão de África. Cheiro a terra molhada — ainda que,
por enquanto, as pérolas de água pareçam evaporar-se assim que tocam o chão.
Streptomyces, assim se chama, pensa o homem, a bactéria que
produz este milagre do olfacto. Mas streptomyces não é um nome bonito. Ele
prefere pensar no que sente apenas como o "cheiro da terra molhada",
agradando-lhe imaginar que podia estar lá fora, recebendo as gotas escassas nas
costas transpiradas enquanto revolvesse com as mãos os segredos do chão que
assim cheira. Mas não o faz. Permanece em casa, caminhando de lá para cá, entre
a janela e a estante dos livros, lendo sem voz os poemas de um livro que
escolheu ao acaso. Ao longe, muito ao longe ainda, principiam a ouvir-se as
primeiras rebentações de trovoada próxima, clareando o céu para o lado
nascente, que é aquele que, com o cair da noite, se pôs escuro, embora o sol
poente inflame ainda, com uma luz irreal, a fachada do edifício onde as
gaivotas esperam, voltadas para o flanco do mar. Cada vez mais perto, os
clarões vão abrindo caminho, os relâmpagos rasgando o escuro, encurtando-se o
espaço entre o clarão breve e o ruído da rebentação; agora tão próxima que
parece capaz de rachar a terra em duas metades. Já se ouve o crepitar eléctrico
das raízes de luz quando a chuva, enfim, engrossa e se transforma numa cortina
aquática e morna, molhando corpos e rostos que não buscam sequer abrigar-se da
bátega forte que se instala.
Bela noite se pôs: uma dessas noites. E, todavia, as
gaivotas não debandam. O homem continua o vai-e-vem lento, necessitando de
esforçar os olhos para continuar a ver as letras impressas no livro que tem nas
mãos. Acende, por isso, a lâmpada que pende do tecto que a humidade manchou há muito.
Poisa o livro e abre as cortinas, inflando o peito para que o cheiro a terra
molhada o invada, como se, deste modo, pudesse aspirar o perfume que há lá fora
também para dentro da sala abafada. Olha o alto do prédio em frente e vê que lá
estão ainda as gaivotas, quietas sob a chuva que cai, indiferentes à
tempestade. Toma, de novo, o livro nas mãos. Escolhe um poema ao acaso.
Pigarreia para clarear a voz e principia a dizer as palavras
e os silêncios que entre elas há, misturando-os ao crepitar dos relâmpagos, ao
murmúrio das gotas, ao ruído do trânsito da cidade. Caminhando de lá para cá,
entre a janela e a estante dos livros, calculando o tempo que fica entre dois
trovões, medindo com os pés o tempo que deve entremear cada palavra, o silêncio
que não é silêncio algum, mas a música do mundo em forma de chuva grossa que
cai no passeio e se evapora com cheiro de terra molhada. Lendo, o homem não
olha o edifício defronte. Mas sabe que, tão certas como a chuva e o ribombar da
tempestade, as gaivotas lá estão fora, esticando os pescoços para grasnarem
quando a restante melodia as convoca.
Manuel Jorge Marmelo
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