«Há Lugar para Dois»
Ilustração/ Milo Manara
521- «HÁ LUGAR PARA DOIS»
Uma belíssima burguesa da rua Saint-Honoré, de
aproximadamente vinte e dois anos, gorduchinha e roliça, carnes as mais viçosas
e apetitosas, todas as formas modelares ainda que um pouco cheias, e que
acrescentava a tão fartos encantos presença de espírito, vivacidade, e gosto o
mais aguçado por todos os prazeres que lhe proibiam as rigorosas leis do
himeneu, decidira, havia quase um ano, arranjar dois ajudantes para seu marido
que, sendo velho e feio, a ela não somente desagradava muito, como também cumpria
mal, se não raramente, os deveres que, talvez, com um pouco mais de desempenho,
poderiam acalmar a exigente Dolmène – assim se chamava nossa bela burguesa.
Nada mais bem combinado do que os encontros marcados com
esses dois amantes: Des-Roues, jovem militar, ficava normalmente das quatro às
cinco horas da tarde e das cinco e meia às sete chegava Dolbreuse, jovem
negociante com o rosto mais bonito que se pode ver. Era impossível fixar outros
momentos; eram os únicos em que a Sra. Dolmène estava tranqüila: de manhã, era
preciso estar na loja e, à tarde, também tinha de aparecer por lá algumas
vezes, ou então o marido voltava, e deviam falar de seus negócios. Por sinal, a
Sra. Dolmène havia confidenciado a uma de suas amigas que ela gostava muito que
os momentos de prazer se sucedessem assim muito próximos um do outro: a chama
da imaginação não se apagava, ela assegurava; desse modo, nada mais temo do que
passar de um prazer a outro; não era difícil retomar a ação, pois a Sra.
Dolmène era uma criatura encantadora que calculava ao máximo todas as sensações
do amor; pouquíssimas mulheres conheciam-nas como ela própria e, em virtude dos
seus talentos, reconhecera que, depois de muito meditar, dois amantes valiam
muito mais do que um; com respeito à reputação, era quase a mesma coisa, um
encobria o outro; poderiam se equivocar, poderia ser sempre o mesmo a entrar e
sair várias vezes durante o dia, e com relação ao prazer, que diferença! A Sra.
Dolmène, que temia em particular a gravidez, bem segura de que seu marido
jamais com ela cometeria a loucura de lhe arruinar a cintura, havia igualmente
imaginado que, com dois amantes, havia muito menos risco, quanto ao que temia,
do que com um, porque, dizia ela, na condição,de excelente anatomista, dois
frutos se destruíam mutuamente.
Certo dia a ordem fixada nos encontros veio a se alterar, e
nossos dois amantes, que nunca se tinham visto, conheceram-se de maneira
engraçada, conforme mostraremos. Des-Roues foi o primeiro, mas chegara muito
tarde, e como se o diabo tivesse se intrometido, Dolbreuse, que era o segundo,
chegou um pouco mais cedo.
O leitor inteligente percebe de imediato que, da combinação
desses dois pequenos erros, deveria acontecer, infelizmente, um encontro
infalível: e assim sucedeu. Porém, mencionaremos como isso se deu e, se
possível, ocupemos-nos desse assunto com toda decência e moderação que tal
assunto já por si muito licencioso, exige.
Por obra de um capricho bastante bizarro – mas tão comum
entre os homens – nosso jovem militar, cansado do papel de amante, quis, por
uns momentos, representar o da amante; em lugar de ser amorosamente abraçado
por sua divindade, quis, por sua vez, abraçá-la: em resumo, o que está em baixo,
coloca-o em cima, e, por essa inversão de posição, inclinada sobre o altar onde
normalmente se oferecia o sacrifício, era Sra. Dolmène que, nua como a Vénus
calipígia, e encontrando-se estendida sobre seu amante, apresentava, diante da
porta do quarto onde se celebravam os mistérios, o que os gregos adoravam com
devoção na estátua que acabamos de mencionar, essa parte mui bela que, em suma
– sem sair à procura de exemplos tão remotos – encontra tantos adoradores em
Paris.
Tal era a atitude quando Dolbreuse, acostumado a entrar sem dificuldade,
chega cantarolando, e vê por um ângulo o que uma mulher verdadeiramente honesta
não deve, segundo dizem, jamais mostrar.
O que teria causado grande prazer a muitas pessoas fez com
que Dolbreuse recuasse.
- O que vejo? – exclamou -… Traidora… é isso que me
reservas?
A Sra. Dolmène que, naquele momento, se encontrava numa
dessas crises em que uma mulher age infinitamente melhor do que raciocina,
resolve mostrar-se audaciosa:
- Que diabo tens tu, – diz ela ao segundo Adónis – sem
deixar de se entregar ao outro – não vejo nisso nada que te cause muito pesar;
não nos perturbes, meu amigo, e contenta-te com o que te resta; como bem podes
notar, há lugar para dois.
Dolbreuse, não conseguindo deixar de rir-se do sangue-frio
de sua amante, pensou que o mais simples era seguir o conselho dela, não se fez
de rogado, e dizem que os três lucraram com isso.
Marquês de Sade
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