«O Vizinho Invejoso»
A Inveja/ Covarrubias, gravura séc. XVI
543- «O VIZINHO INVEJOSO»
Há muito, muito tempo vivia numa aldeia um velho casal que,
visto não ter filhos a quem amar e cuidar, dedicava todo o seu afecto a um
cãozinho. Era um animalzinho bonito que, em vez de se tornar mimado ou mau
quando não obtinha o que queria - como às vezes acontece, até, com as crianças,
se mostrava grato aos donos pela sua bondade e nunca os deixava, quer
estivessem em casa, quer fora dela.
Um dia o velho trabalhava no jardim e, como de costume, o cão fazia-lhe
companhia. A manhã estava quente e, a certa altura, o homem largou a enxada e
enxugou a testa, notando ao mesmo tempo que o animal farejava e escarvava a
terra com as patas, a pouca distância. Não havia nada de estranho nisso, pois
todos os cães gostam de arranhar a terra, e o velho continuou a cavar,
tranquilamente. De súbito o cão correu para ele, a ladrar, e voltou ao local
onde estivera, repetindo várias vezes tal procedimento. Admirado, o homem pegou
na enxada e seguiu-o. O cão estava tão contente com o seu êxito, que não parava
de ladrar e saltar e o barulho que fazia atraiu a velhota, que saiu de casa
para ver o que acontecera.
Com curiosidade de saber se o animal encontrara, na realidade, alguma coisa, o
marido começou a cavar e a enxada não tardou a bater em qualquer coisa.
Baixou-se e retirou do buraco uma grande caixa cheia de reluzentes moedas de
ouro. A caixa era tão pesada que a velha teve de o ajudar a transportá-la para
casa, e podeis imaginar o rico jantar que o cão teve naquela noite! Agora que
os tornara ricos, todos os dias os donos lhe davam tudo quanto um cão gosta de
comer e o deitavam em almofadas dignas de um príncipe.
A história do cão e do tesouro depressa se espalhou, e um vizinho cuja horta ficava
pegada à dos velhotes teve tanta inveja que não podia comer nem dormir. Como o
cão descobrira um tesouro, o idiota pensou que podia descobrir mais e rogou ao
casal que lhe emprestasse o animal por uns tempos, para enriquecer também.
- Como se atreve a pedir semelhante coisa? - perguntou-lhe o velho, indignado.
- Sabe quanto gostamos do cão e que nunca o perdemos de vista nem cinco
minutos.
Mas o invejoso vizinho não fez caso das suas palavras e todos os dias vinha com
o mesmo pedido, até que os velhotes, que não gostavam de dizer «não» a ninguém,
prometeram emprestar-lhe o animalzinho só por uma noite ou duas. Assim que se
apanhou com ele soltou-o na horta, mas o cão limitou-se a correr de lado para
lado e o homem não teve outro remédio senão esperar com a paciência que pôde
arranjar. À noite levou-o para casa.
Na manhã seguinte abriu-lhe a porta e o cão saltou alegremente para a horta,
correu para uma árvore e começou a cavar desembaraçadamente. O homem gritou à
mulher que trouxesse uma pá e correu atrás do cão, ansioso por entrever os
primeiros fulgores do desejado tesouro. Mas, depois de cavar no local indicado,
que julgais que encontrou? Apenas um embrulho de velhos ossos, dos quais se
desprendia tal fedor que não pôde suportá-lo.
Sentiu tanta cólera contra o cão que assim o enganara que pegou numa picareta e
o matou, sem saber o que fazia. Quando se lembrou de que teria de dar uma
explicação ao velho casal, ficou aterrorizado, mas como não ganharia nada
calando-se, arvorou uma expressão muito triste e dirigiu-se à horta do vizinho.
O vosso cão morreu de repente - informou, fingindo chorar -,embora tivesse
tomado bem conta dele e lhe desse tudo quanto podia desejar. Achei melhor vir
informá-los...
Chorando amargamente, o velho foi buscar o corpo do animalzinho e enterrou-o
sob a figueira onde ele achara o tesouro. De manhã à noite ele e a mulher
choraram a sua perda, sem que nada os consolasse. Por fim, uma noite, o velhote
sonhou que o cão lhe aparecia e lhe dizia que abatesse a figueira junto da qual
estava a sua campa e da madeira fizesse um almofariz. Mas quando acordou e
recordou o seu sonho, não se sentiu muito inclinado a derrubar uma árvore que
todos os anos dava abundantes frutos e, por isso, consultou a mulher. Esta não
hesitou um momento sequer. Depois do que acontecera, disse, o conselho do cão
devia ser seguido. Portanto, a árvore foi derrubada e feito dela um belo
almofariz.
Quando chegou a altura de colher o arroz, o almofariz foi tirado da prateleira
e meteram-se-lhe dentro os bagos de arroz, para serem pisados. Mas, maravilha!,
num abrir e fechar de olhos transformaram-se em moedas de ouro! Ao verem tanta
riqueza, o coração dos velhos alegrou-se e mais uma vez abençoaram o seu fiel
cão.
A história não tardou a chegar aos ouvidos do vizinho invejoso, o qual se
apressou a ir perguntar, ao casal se tinha um almofariz que lhe emprestasse. O
velho não gostou muito de emprestar o seu precioso tesouro, mas como não sabia
dizer que não o vizinho levou-o.
Mal chegou a casa, pegou num grande punhado de arroz e começou a descascá-lo,
ajudado pela mulher, mas em vez das moedas de ouro que esperavam o arroz
transformou-se em sementes tão malcheirosas que tiveram de fugir, mas só depois
de, furiosos, partirem o almofariz e deitarem fogo aos bocados.
Os velhotes ficaram, como é natural, muito contrariados ao saberem o que
acontecera ao seu almofariz, e não os confortou nada as explicações e desculpas
apresentadas pelo vizinho.
Mas nessa noite o cão apareceu outra vez em sonhos ao dono e disse-lhe que
fosse buscar as cinzas do almofariz e as levasse para casa. Quando o grande
Manchu a quem aquela parte do território pertencia tosse à capital, o velho
devia levar as cinzas à estrada pela qual o coreJ° Passaria e, assim que o
visse surgir, subir a todas as cerejeiras, uma por uma, e espalhar nelas as
cinzas. As árvores não tardariam a florir como jamais haviam florido.
Desta vez o velho não precisou de consultar a mulher para saber se devia fazer
o que o cão lhe dissera. Assim que se levantou foi a casa do vizinho, recolheu
as cinzas do almofariz, guardou-as num vaso de porcelana e levou-as para a
estrada, em cuja berma se sentou à espera da passagem do Manchu. As cerejeiras
estavam nuas, pois era a estação em que costumavam vender-se rebentos envasados
às pessoas ricas, para que os tivessem em casa, onde desabrochariam e
enfeitariam os aposentos. Quanto às árvores que ladeavam a estrada, ninguém se
lembraria de procurar nelas um botão que fosse antes que decorresse pelo menos
um mês.
Não esperava havia muito tempo quando viu, ao longe, uma nuvem de poeira e
calculou que fosse o cortejo do Manchu. Era, de facto. Os homens que o
compunham vestiam os mais belos fatos e a multidão que enchia a estrada
curvava-se até ao chão, à passagem do séquito. Só o velho não se curvou, facto
que não passou despercebido ao grande senhor. Este ordenou a um dos cortesãos
que lhe perguntasse porque desobedecera aos antigos costumes, mas, antes que o
mensageiro o alcançasse, o velho trepara à árvore mais próxima e espalhara as
cinzas, num gesto largo. As flores brancas desabrocharam, num instante, e o
Manchu rejubilou, cumulou o velho de presentes e convidou-o para o seu palácio.
Claro que o vizinho invejoso não tardou a saber também essa novidade e o
coração quase lhe estoirou de inveja. Apressou-se a ir ao local onde queimara o
almofariz e a recolher um resto de cinzas que o velho deixara, as quais levou
para a estrada, na esperança de que a sua sorte fosse tão boa, ou mesmo melhor,
que a do vizinho.
O coração saltou-lhe de prazer quando avistou os primeiros sinais da
aproximação do cortejo, e preparou-se para o grande momento. Ao ver o Manchu,
atirou um punhado de cinzas para as árvores, mas do seu gesto não nasceram
botões nem desabrocharam flores. Em vez disso, o vento atirou as cinzas para os
olhos do Manchu e dos seus guerreiros, que gritaram de dor. Irritado, o Manchu
ordenou que capturassem o atrevido e o metessem numa prisão, onde ficou muitos
meses.
Quando o libertaram toda a gente da aldeia descobrira a sua maldade e não lhe
permitiram que lá continuasse a viver. Como não se emendou, foi de mal a pior e
teve um fim desgraçado.
Pearl S. Buck
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