sábado, 6 de junho de 2015

OUTROS CONTOS

«A Morte», por Thomas Mann.
«A Morte»
A Morte em Veneza/ Thomas Mann

525- «A MORTE»

10 de Setembro

Agora o Outono está aí, e o Verão não voltará; jamais o verei novamente...

O mar está cinzento e calmo, e cai uma chuva fina, triste. Quando eu a vi hoje pela manhã, dei adeus ao verão e saudei o outono, meu quadragésimo outono, que agora realmente se aproxima, inexoravelmente. E inexoravelmente ele trará aquele dia cuja data às vezes digo baixo para mim mesmo com um sentimento de devoção e de espantosa tranquilidade...

12 de Setembro

Passeei um pouco com a pequena Assunção. Ela é uma boa companhia, que fica calada, e apenas às vezes ergue para mim seus os olhos grandes e carinhosos.

Fomos pela beira da praia até Kronshafen, e voltamos oportunamente antes de encontrarmos mais do que uma ou duas pessoas.

Enquanto caminhávamos, alegrei-me com a visão da minha casa. Como a escolhi bem! Simples e cinza, vista desde a colina, cuja grama ora murcha e húmida e cujo caminho ora encharcado estão para além do mar cinzento. Atrás passa a estrada, e atrás dela ficam os campos. Mas eu não reparo nisso; eu reparo apenas no mar.

15 de Setembro

Esta solitária casa sobre a colina em frente ao mar sob o céu cinza é como uma lenda lúgubre, misteriosa; e assim eu a quero em meu último outono. Hoje à tarde, quando eu olhava pela janela do meu escritório, havia uma carroça que trazia mantimentos, o velho Franz ajudava a descarregar, e havia barulho e diversas vozes. Eu não posso dizer como isso me incomodou. Estremeci diante da minha própria reprovação: ordenei que semelhante coisa apenas de manhã cedo devesse acontecer, quando eu dormisse. O velho Franz disse apenas: “Às ordens, senhor Conde.” Mas seus olhos estavam tomados de medo e de dúvida.

Como ele poderia me entender? Ele nada sabe. Eu não quero que alterem a trivialidade e o aborrecimento nos meus últimos dias. Antes, eu temo que a morte possa ter algo de burguês e de ordinário em si. Ela deve ser para mim há muito algo estranho e peculiar no grande, sério, enigmático dia – em doze de Outubro...

18 de Setembro

Durante os últimos dias, eu não passeie, mas fiquei a maior parte do tempo na chaise-longue. Eu tampouco podia ler muito, porque meus nervos me atormentavam. Eu simplesmente fiquei taciturno e olhei para a chuva incansável, vagarosa.

Assunção veio seguidamente, e uma vez me trouxe flores, algumas magras e húmidas plantas que ela encontrou na praia; quando beijei a criança para agradecer, ela chorou, porque eu estava “doente”. De quão doloroso e inefável modo tocou-me seu meigo e triste afecto!

21 de Setembro

Eu olhei por muito tempo pela janela do meu escritório, e Assunção estava sentada sobre meus joelhos. Nós olhamos o cinza e distante mar, e atrás de nós no grande aposento, com porta alta, branca e com rígidos móveis, reinava o profundo silêncio. E enquanto eu afagava lentamente o macio cabelo da criança, que preto e singelo caia sobre seus frágeis ombros, eu pensava em minha vida caótica, confusa; pensei em minha juventude, que foi tranquila e protegida, em minhas andanças pelo mundo, e nos períodos breves, luminosos de minha felicidade.

Tu te lembras da encantadora e ardente afectuosidade da criatura sob o aveludado céu de Lisboa? Foi há doze anos que ela lhe deu a criança e morreu tendo ainda o braço em torno do seu pescocinho.

Ela tem os olhos escuros da mãe, a pequena Assunção; eles são apenas mais cansados e mais pensativos. Acima de tudo, ela tem sua boca, esta maciez infinita e, no entanto, um pouco amarga, que é mais bonita quando silencia e apenas de modo totalmente vago sorri.

Minha pequena Assunção! Se tu soubesses que eu tenho de te abandonar. Choraste por que estava eu “doente”? Ah, o que se pode fazer! O que se pode fazer com o doze de Outubro!...

23 de Setembro

Dias, em que eu posso novamente pensar e me perder em lembranças, são raros. Há quantos anos eu era capaz apenas de pensar no futuro, apenas para esperar por esse grande e estremecedor dia, pelo doze de Outubro de meus quarenta anos de vida!

Como será, apenas como será! Eu não temo, mas me parece que ele se aproxima devagar e angustiante, este doze de Outubro.

27 de Setembro

O velho doutor Gudehus veio de Kronshafen, ele veio de carroça pelo caminho da estrada e almoçou com Assunção e comigo.

“É necessário”, ele disse e comeu meia galinha, “que o senhor se movimente, Senhor Conde, muito movimento ao ar livre. Não leia! Não pense! Não medite! Eu o tomo realmente por um filósofo, he, he!”

Eu lhe dei os ombros e agradeci gentilmente seu esforço. Também para a pequena Assunção havia conselhos, e ele contemplou-a com seu sorriso forçado e constrangido. Ele teve de aumentar minha dose de bromo; talvez para que eu agora possa dormir um pouco mais.

30 de Setembro

O último setembro! Agora não falta muito. São três horas da tarde, e eu calculei quantos minutos ainda faltam para o começo do doze de Outubro. São 8460.

Eu não consegui dormir à noite, pois o vento soprava e o mar e a chuva ressoavam. Eu fiquei deitado e deixei o tempo passar. Pensar e meditar? Ah, não! Doutor Gudehus me toma por um filósofo, mas minha cabeça está muito fraca, e eu posso apenas pensar: a morte, a morte!

2 de Outubro

Estou profundamente comovido, e em minha emoção mistura-se um sentimento de triunfo. Às vezes, eu pensava sobre isso e alguém me olhava com medo e desconfiança, eu notei que alguns me tomavam por demente, então eu mesmo me examinei com desconfiança. Ah, não! Eu não estou demente.

Hoje eu li a história daquele imperador Friedrich, que alguém profetizou: morrerá “sub flore”. Ele evitava as cidades de Florença e Florentium, mas outrora mesmo assim ele foi a Florentium: e ele morreu. – Por que ele morreu?

Uma profecia é em si não importante; interessa se ela exerce poder sobre outrem. Mas se o consegue, já está provada e será uma realização. – Como? E é uma profecia que em mim mesmo se abre e se fortalece não valiosa como algo que vem de fora? E é o inabalável conhecimento do momento em que se morrerá mais duvidoso do que o do lugar?

Oh, há uma permanente aliança entre o ser humano e a morte! Tu podes aspirar em sua esfera com teu desejo e com tua convicção, tu podes puxá-la para ti, que ela caminhará para ti, para a hora em que tu pensas...

3 de Outubro

Frequentemente, quando meus pensamentos emanam de mim como um corpo d’água cinza, que de mim resplandecem imensamente, porque eles estão velados pela névoa, eu vejo algo como o nexo das coisas e penso conhecer a futilidade dos conceitos.

O que é suicídio? A morte voluntária? Mas ninguém morre involuntariamente. O renunciar à vida e a dedicação à morte decorrem indistintamente de uma fraqueza, e esta fraqueza é o constante efeito de uma doença ou do corpo ou da alma, ou de ambos. Não se morre antes de se estar de acordo com a morte...

Estou de acordo? Devo estar perfeitamente de acordo, pois penso que poderia ficar demente se eu não morresse em doze de Outubro...

5 de Outubro

Eu penso constantemente sobre isso e isso me ocupa totalmente. – Eu reflicto sobre isso, quando e de onde vem meu conhecimento, eu não estou em condições de dizer! Eu sabia com dezanove ou vinte anos que eu deveria morrer com quarenta anos, e um dia, como eu insistentemente me perguntava em que dia isso aconteceria, então eu soube também o dia!

E agora isso ele se aproxima e está tão perto, tão perto, que eu penso sentir o frio hálito da morte.

7 de Outubro

O vento se intensificou, o mar troava e a chuva batia no telhado. Eu não dormi à noite, fui lá para baixo, na praia, com minha capa de chuva e sentei-me sobre uma pedra.

Atrás de mim estava, na escuridão e na chuva, a colina com a casa cinza, na qual a pequena Assunção dormia, minha pequena Assunção! E diante de mim, o mar rolava sua turva espuma até meus pés.

Durante toda noite eu olhei para fora e pensei: assim deve ser a morte ou o após a morte: lá, além e longe, um certo mistério infinito e sombrio troava. Sobreviverá e dará frutos um pensamento, uma intuição, algo de mim que será eternamente ouvido a partir do rugido incompreensível?

8 de Outubro

......Eu quero agradecer à morte, pois ela virá em breve me atender, como se eu ainda pudesse esperar. Ainda três curtos dias de outono e acontecerá. Como eu estou curioso pelo último momento, o último de todos! Não deve ser um momento de encanto e de indizível doçura? Um momento do mais intenso prazer?

Ainda três curtos dias de outono e a morte caminhará aqui, em meu quarto, para mim – como ela se comportará? Ela me tratará como um verme? Ela me agarrará pelo pescoço e me estrangulará? Ou ela apanhará meu espírito com sua mão? – Eu a imagino grande e bela e de uma selvagem majestade!

9 de Outubro

Eu disse para Assunção, que estava sentada sobre meus joelhos: “Se eu me fosse em breve de algum modo, tu ficarias muito triste?” Então, ela aconchegou sua cabecinha em meu peito e chorou amargamente. – Senti um nó na garganta.

Aliás, tenho febre. Minha cabeça está quente e eu tremo de frio.

10 de Outubro

Ela estava em minha casa, nesta noite ela estava em minha casa! Eu não a vi e não a ouvi, e mesmo assim conversei com ela. É cómico, mas ela se comporta como um dentista! – “Será melhor se nós fizermos logo um acordo”, ela me disse. Mas eu não queria e lutei contra. Com poucas palavras mandei-a embora.

“Será melhor se nós fizermos logo um acordo!” Como isso soou! Foi-me profundamente desagradável! Tão austero, tão enfadonho, tão burguês! Nunca conheci um sentimento de tão fria e sarcástica decepção.

11 de Outubro (11 horas da noite)

Compreendo-a? Oh! Acredite em mim, eu a compreendo!

Há uma hora e meia, quando eu estava sentado em meu quarto, o velho Franz veio até mim; ele tremia e soluçava. “A senhorita!”, ele gritou, “a criança! Ah, venha rápido, senhor!” – E eu fui rapidamente.

Eu não chorei, e apenas um frio arrepio estremeceu-me. Ela estava deitada em sua caminha e seus cabelos pretos emolduravam seu pálido e sofrido rosto. Eu me ajoelhei ao seu lado e nada fiz e nada pensei. – O doutor Gudehus chegou.

“Foi uma insuficiência cardíaca”, ele me disse e anuiu como alguém que não estivesse surpreendido. Esse tolo e trapalhão age como se soubesse!

Eu, mas – eu a compreendi? Oh, quando eu estava sozinho com ela – lá fora chuva e mar ressoavam, e o vento uivava na chaminé – eu bati na mesa, em um momento tornou-se claro para mim! Por longos vinte anos eu me aproximei da morte, do dia que começará em uma hora, e profundamente dentro de mim algo era sabido, algo oculto era sabido, eu não podia desamparar essa criança. Eu não poderia morrer depois da meia-noite, mas isso deveria ser! Eu deveria novamente mandá-la embora quando ela chegasse: mas ela foi primeiro para a criança porque ela deveria obedecer meu conhecimento e minha crença. Eu mesmo coloquei a morte em sua caminha, eu a matei, minha pequena Assunção? Ah, essas são palavras pífias e miseráveis para coisas subtis e misteriosas!

Adeus, adeus! Talvez eu reencontre um pensamento, uma intuição, lá fora. Então veja: o ponteiro do relógio se move, e a lâmpada que ilumina seu doce rosto logo estará apagada. Eu seguro sua mão pequena, fria, e aguardo. Logo ela caminhará em minha direcção, e eu apenas anuirei e fecharei os olhos quando a ouvir dizer: “Será melhor se nós fizermos logo um acordo”...

Thomas Mann

1 comentário:

Anónimo disse...

Fantástico Thomas Mann, Prémio Nobel da Literatura.