«Um Homem Extraordinário»
Conto de Anton Tchekhov
561- «UM HOMEM EXTRAORDINÁRIO»
Passa de meia-noite. Diante da porta Mária Pietróvna
Kóchkina, parteira-solteirona, para um senhor alto, de cartola e redingote de
capuz. Na escuridão outonal não se pode distinguir nem o rosto nem as mãos, mas
já na maneira de pigarrear e de puxar a campainha percebe-se seriedade,
positividade e uma certa autoridade. Após o terceiro toque, a porta se abre e
aparece a própria Mária Pietróvna. Por cima da saia branca, ela jogou um casaco
masculino. A pequena lâmpada de abajur verde que ela tem nas mãos tinge de
verde o seu rosto sardento, amarrotado de sono, o pescoço venoso e os
cabelinhos ralos e aloirados que lhe escapam de sob a toca.
– Posso falar com a parteira? – pergunta o cavalheiro.
– Sou eu mesma a parteira. O que deseja?
O cavalheiro entra no vestíbulo, e Mária Pietróvna vê à sua
frente um homem alto e bem–proporcionado, já não jovem mas de rosto bonito e
severo e suíças felpudas.
– Sou o assessor colegiado Kiriákov – diz ele. – Vim
procurá-la para a minha mulher. Mas o mais depressa possível, por favor.
– Está bem... – concorda a parteira. – Já vou me vestir,
enquanto o senhor tem a bondade de me esperar na sala. A luz verde da lâmpada
cai fracamente sobre a mobília barata coberta de forros brancos remendados,
sobre as pobres flores, os batentes pelos quais sobem heras... Há um odor de
gerânio e fenol. Um reloginho de parece tiquetaqueia timidamente, como que
embaraçado diante do homem estranho.
– Estou pronta, senhor! – diz Mária Pietróvna,
entrando na sala uns cinco minutos mais tarde, já vestida, lavada e desperta. –
Vamos indo?
– Sim, é preciso ir logo... – diz Kiriákov. – A propósito,
uma pergunta necessária: quanto a senhora cobrará pelos seus serviços?
– Realmente, não sei... – sorri Mária Petróvna, encabulada.
– Quanto o senhor me der...
– Não, dessas coisas eu não gosto – diz Kiriákov, fitando a
parteira com um olhar frio e imóvel. – Não preciso do que é seu, nem a senhora
precisa do que é meu. Para evitar mal-entendidos, será mais sensato que
combinemos antes.
– Mas, realmente, eu não sei... Não há um preço fixo.
– Eu mesmo trabalho e costumo dar valor ao trabalho alheio.
Não gosto de injustiças. Para mim será igualmente desagradável se eu pagar
menos ou me cobrar a mais, e por isso insisto que a senhora me diga o seu
preço.
– Mas se existem preços diferentes!
– Hum!... Em vista de suas hesitações, que me são
incompreensíveis, devo eu mesmo fixar o preço. Posso dar-lhe dois rublos...
– O que é isso, por favor... – diz Mária Petróvna, recuando.
– Eu fico até sem jeito... Para aceitar dois rublos, então já é melhor fazer de
graça. Se quiser, por cinco rublos...
– Dois rublos, nem mais um copeque. Não preciso do que é
seu, tampouco estou disposto a pagar em excesso.
– Como quiser, senhor. Mas por dois rublos eu não irei...
– Mas por lei a senhora não tem o direito de recusar.
– Pois não, eu irei de graça.
– De graça eu não quero. Todo trabalho tem de ser
recompensado. Eu mesmo trabalho e compreendo...
– Por dois rublos eu não vou, senhor... – declara Mária
Petróvna mansamente. – Se quiser, de graça...
– Neste caso lamento muito tê-la incomodado inutilmente...
Tenho a honra de me despedir.
– Como o senhor é, realmente... – diz a parteira,
acompanhando Kiriákov até o vestíbulo. – Se faz tanta questão, pois não, eu
irei por três rublos.
Kiriákov franze o cenho e pensa por dois minutos inteiros,
olhando concentradamente para o chão, depois diz um “não!” resoluto e sai para
a rua. A perplexa e constrangida parteira tranca a porta atrás dele e volta
para o seu dormitório.
“É bonito, imponente, mas como é esquisito, por Deus...”,
pensa ela, deitando-se.
Mas não passa nem meia hora, quando a campainha torna a
soar; ela se levanta e vê no vestíbulo o mesmo Kiriákov.
– Estranha desorganização! – diz ele. – Nem na
farmácia, nem os policiais, nem os caseiros, ninguém conhece endereços de
parteiras, e desta forma eu me vejo colocado diante da necessidade de concordar
com as suas condições. Eu lhe darei os três rublos, mas... advirto-a de que ao
contratar empregados e ao fazer uso de qualquer tipo de serviço eu combino de
antemão que no ato do pagamento não haja conversa sobre acréscimos, gorjetas
etc. Cada um deve receber o seu.
Mária Petróvna escuta Kiriákov faz pouco tempo, mas sente
que já está farta dele, que ele lhe é repulsivo, que o seu discurso plano e
comedido deita-se como um peso sobre a sua alma. Ela se veste e sai com ele
para a rua. O ar está silencioso, mas tão frio e enfarruscado que mal se podem
ver até mesmo as luzes dos postes de iluminação. Debaixo dos pés a lama soluça.
A parteira fixa os olhos, mas não vê carruagem...
– Não deve ser longe? – pergunta ela.
– Não é longe – responde Kiriákov taciturno.
Eles passam por uma travessa, outra, a terceira... Kiriákov
marcha, e até no seu andar mostra-se a positividade e a autoridade.
– Que tempo horroroso! – puxa conversa a parteira.
Mas ele se cala solidamente e visivelmente procura pisar nas
pedras lisas, para não estragar as galochas. Finalmente, após longa caminhada,
a parteira entra no vestíbulo; dali vê-se uma grande sala, decentemente
arrumada. Nos quartos, até mesmo no dormitório onde está deitada a parturiente,
nem vivalma...Parentes e velhotas, que pululam em qualquer recinto de parto,
aqui estão ausentes. Agita-se como uma condenada apenas uma cozinheira de cara
obtusa e assustada. Ouvem-se gemidos altos.
Passam-se três horas. Mária Pietróvna está ao lado da cama
da parturiente, cochichando alguma coisa. As duas mulheres já tiveram tempo de
travarem conhecimento, de se reconhecerem, de tagarelarem, suspirarem...
– A senhora não pode falar! Preocupa-se a parteira, mas ela
mesma não para de despejar perguntas.
Mas eis que se abre a porta e, quieto, ponderado, entra no
quarto o próprio Kiriákov. Senta-se numa cadeira e alisa as suíças. Faz-se um
silêncio... Mária Pietrovna lança olhares tímidos para o seu rosto bonito mas
inexpressivo como madeira e espera que ele comece a falar. Mas ele permanece
obstinadamente calado, pensando em alguma coisa. A espera é inútil, e a
parteira decide ela mesma começar a conversa e pronuncia uma frase que
geralmente se diz durante os partos:
– Pois é, graças a Deus, há um ser humano a mais no mundo!
– Sim, é agradável – diz Kiriákov, conservando a expressão
de madeira no rosto –, se bem que, por outro lado, para se ter filhos
supérfluos, é preciso ter dinheiro supérfluo. Uma criança não nasce alimentada
e vestida.
No rosto da parturiente surge uma expressão culpada, como se
ela tivesse posto no mundo um ser vivo sem permissão ou por puro capricho.
Kiriákov levanta com um suspiro e sai ponderadamente.
– Mas como ele é com a senhora, meu Deus... – diz a parteira
à parturiente. – Tão severo e não sorri.
A parturiente conta que ele, o marido, é sempre assim...
honesto, justo, ponderado, sensatamente econômico, mas tudo isso em dimensões
tão extraordinárias, que os simples mortais sentem-se sufocados. Os parentes
afastaram-se dele, os criados não param mais que um mês, conhecidos não há, a
mulher e os filhos estão sempre tensos de medo com cada um dos seus passos. Ele
não bate, não grita, tem muito mais virtudes que defeitos, mas quando ele sai
de casa, todos se sentem mais leves e saudáveis. Por que razão isto é assim a
própria parturiente não é capaz de compreender.
– É preciso limpar bem as bacias e guardá-las na dispensa –
diz Kiriákov, tornando a entrar no dormitório.
– Estes vidros também é preciso guardá-los, podem vir a ser
úteis.
O que ele diz é simples e comezinho, mas a parteira sente um
estranho mal-estar. Ela começa a ter medo desse homem e estremece toda vez que
ouve os seus passos... De manhã, preparando-se para partir, ela vê na sala de
jantar o filho pequeno de Kiriákov, um ginasiano pálido de cabeça raspada,
tomando chá... De pé, diante dele, está Kiriákov e fala com a sua voz pausada e
igual:
– Você sabe comer, pois saiba também trabalhar. Agora mesmo
você deu um gole, mas não pensou, decerto, que esse gole custa dinheiro, e o
dinheiro se consegue trabalhando. Pois coma e pense...
A parteira olha para o rosto sem expressão do menino e
parece-lhe que até o ar está pesado, e que mais um pouco as paredes ruirão, não
suportando a presença opressiva do homem extraordinário. Fora de si de medo, e
já sentindo um forte ódio por esse homem, Mária Pretróvna apanha suas
trouxinhas e sai apressadamente.
No meio do caminho, lembra-se de que esqueceu de receber os
seus três rublos, mas depois de parar e pensar um pouco, faz um gesto de
desistência com a mão e continua a caminhar.
Anton Tchekhov
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