«Genealogia do Fanatismo»
Texto de Emil Cioran
567- «GENEALOGIA DO FANATISMO»
[Excerto]
Em si mesma, toda ideia é neutra ou deveria sê-lo; mas o
homem a anima, projeta nela suas chamas e sua demências; impura, transformada
em crença, insere-se no tempo, toma a forma de acontecimento: a passagem da
lógica à epilepsia está consumada… Assim nascem as ideologias, as doutrinas e
as farsas sangrentas.
Idólatras por instinto, convertemos em incondicionados os
objectos de nossos sonhos e de nossos interesses. A história não passa de um
desfile de falsos Absolutos, uma sucessão de templos elevados a pretextos, um
aviltamento do espírito ante o Improvável. Mesmo quando se afasta da religião,
o homem permanece submetido a ela; esgotando-se em forjar simulacros de deuses,
adopta-os depois febrilmente: sua necessidade de ficção, de mitologia, triunfa
sobre a evidência e o ridículo. Sua capacidade de adorar é responsável por
todos os seus crimes: o que ama indevidamente um deus obriga os outros a
amá-lo, na espera de exterminá-los se recusam.
Não há intolerância, intransigência ideológica ou proselitismo que não revelem
o fundo bestial do entusiasmo.
Que perca o homem sua faculdade de indiferença:
torna-se um assassino virtual; que transforme sua ideia em deus: as
consequências são incalculáveis. Só se mata em nome de um deus ou de seus
sucedâneos: os excessos suscitados pela deusa Razão, pela ideia de nação, de
classe ou de raça são parentes da Inquisição ou da Reforma. As épocas de fervor
se distinguem pelas façanhas sanguinárias. Santa Teresa só podia ser
contemporânea dos autos de fé e Lutero do massacre dos camponeses. Nas
crises místicas, os gemidos das vítimas são paralelos aos gemidos do
êxtase… patíbulos, calabouços e masmorras só prosperam à sombra de uma fé –
dessa necessidade de crer que infestou o espírito para sempre.
O diabo empalidece comparado a quem dispõe de uma
verdade, de sua verdade. Somos injustos com os Neros ou com os
Tibérios: eles não inventaram o conceito de herético: foram apenas sonhadores
degenerados que se divertiam com os massacres. Os verdadeiros criminosos são os
que estabelecem uma ortodoxia no plano religioso ou político, os que distinguem
entre o fiel e o cismático.
No momento em que nos recusamos admitir o carácter
intercambiável das ideias, o sangue corre… Sob as resoluções firmes ergue-se um
punhal; os olhos inflamados pressagiam o crime. Jamais o espírito hesitante,
afligido pelo hamletismo, foi pernicioso: o espírito do mal reside na tensão da
vontade, na inaptidão do quietismo, na megalomania prometeica de uma raça que
se arrebenta de tanto ideal, que explode sob suas convicções e que, por
haver-se comprazido em depreciar a dúvida e a preguiça – vícios mais nobres do
que todas as suas virtudes – , embrenhou-se em uma via de perdição, na
história, nesta mescla indecente de banalidade e apocalipse… Nela as certezas
abundam: suprima-as e suprimirá sobretudo suas consequências: restituirá o
paraíso. O que é a Queda senão a busca de uma verdade e a certeza de havê-la
encontrado, a paixão por um dogma, o estabelecimento de um dogma?
Disso resulta o fanatismo – tara capital que dá ao homem o
gosto pela eficácia, pela profecia, pelo terror – , lepra lírica que contamina
as almas, as submete, as tritura ou as exalta…
[...]
Emil Cioran
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