«A História do Hidroavião»
Hidroavião/ Hergé
605- «A HISTÓRIA DO HIDROAVIÃO»
Era uma vez um homem sentado diante de casa, a olhar para o
rio. Casa é maneira de falar porque não se pode chamar casa a uma barraca de
tábuas costuradas com arame e reforçadas de placas de cartão, com um pedaço de
zinco a servir de telhado. Mas nessa parte da cidade, em Cabo Ruivo, ao pé dos
fumos da Siderurgia, quem tinha chegado de África, como o homem, sem mais roupa
que a do corpo e sem mais bagagem que um baralho de cartas, era dessa forma que
se governava. O Boeing de Angola desembarcava em Lisboa as pessoas fugidas à
guerra, e no dia seguinte lá andavam elas, truca truca, a martelar cabanas num
baldio de ervas frente aos vapores do Tejo, entre armazéns ao abandono e um
hidroavião que era um esqueleto de morcego, com a pele de lona a desfazer-se
debaixo da surpresa das gaivotas.
Barracas assim contavam-se para cima de três dúzias, umas
mais perto outras mais longe da água, feitas com os desperdícios de uma obra
(tijolos, pranchas, areia, ruínas de andaime) que não se completara sabe Deus
porquê, deixando ferramentas oxidadas, buracos de cabouco e sacos de cimento,
de que as pessoas se serviam para inventar moradias. Passeava-se por ali corno
num acampamento de pobres, numa aldeia de miséria: havia quem secasse camisas
numa corda entre dois paus, quem soprasse o lume de uma panela de esmalte,
agachado para um borralho de cinzas, havia cães arredios, medrosos de pedras,
a farejarem canecos, havia crianças mulatas a brincarem com bocaditos de canas,
havia a cidade que parecia um grande pulmão de chaminés e janelas a respirar
nas costas do homem, e havia sobretudo o rio, que para aquelas bandas, a bem
dizer, nem rio era: um pântano cinzento, horizontal até aos morros de
Alcochete, ou do que, para viajantes de Angola, se calculava que fosse
Alcochete, a brilhar, à noite, lantejoulas de leque sevilhano.
Ao homem sentado diante de casa tanto se lhe dava que se
tratasse de Alcochete, Nova Iorque ou Paris: tinha um rectângulo de cortiça nos
joelhos, para a paciência de cartas, e ao levantar os olhos do baralho, com a
cabeça ainda em Luanda, não era o Tejo que via: era urna ilha de palmeiras, uma
concha de arcadas com aves pernaltas nas empenas, e fragatas a gasóleo largando
para a pesca, num rastro de motores e batucada.
O homem morou quarenta e sete anos em África, a trabalhar de
motorista de camião ao serviço dos holandeses dos diamantes, e custava-lhe
habituar-se a uma terra de frio onde ninguém o conhecia, tirando os vizinhos
da desgraça que dividiam com ele uma língua de lama e alforrecas, furtada aos
desenfades do rio. E mesmo assim, calado como era, as poucas frases que dizia
reservava-as para os azares do baralho, valete de ouros sobre a dama de paus,
cinco de copas sobre seis de espadas, um duque desesperado a acenar asas de
mocho, sem terno preto onde ancorar.
De forma que estava o homem diante de casa, às voltas com
ases e manilhas, e sentado ao lado dele, num balde ao contrário, um cego de
óculos de mica. Muito direito, atento com os ouvidos que é como os cegos vêem,
a enrolar uma mortalha com deditos de croché, e mal os sons rareavam, sinal de
que o homem hesitava a pensar, o cego perguntava logo, inquieto;
— Como é Lisboa, Artur?
E, ao fim de um silêncio comprido, o homem, a desfazer a
paciência com a mão aberta e a olhar para Alcochete:
— Lisboa?
Guardava as cartas de má morte no bolso,
e ficava-se, de pálpebra rancorosa, no hidroavião, à medida que pelas
redondezas começava uma agitação de ralhos e de caldos em púcaros de folha, que
era o jantar de quem viera de Angola, sem dinheiro para urna quarta de
chouriço. O homem não comia: demorava-se crepúsculo adentro até o hidroavião
desaparecer nas luzinhas de Alcochete ou de Paris, que para os nascidos em
África, como era o caso, era igual ao litro, e o cego ao lado dele, também sem
caldo, impassível nos óculos de mica, a puxar fósforos e a acender o cigarro na
colher da mão. Já estava tudo escuro, só candeeiros a tremelicarem ao longe e
um ventinho nas ervas, e o homem, de gola levantada por causa das traições de
bronquite, a pensar que ele e o baralho se achavam em Portugal há três semanas
no mínimo: do andar na Amadora que umas senhoras de fitas ao pescoço lhe
prometeram no aeroporto nem a sombra, e nisto o cego, curioso, a chupar o
cigarro, numa voz que se confundia com os grilos:
— Como é Lisboa, Artur?
O homem olhou em torno: ralhos, estalos de púcaros de folha,
choros a fosforescerem aqui e acolá, pavios de azeite em amparos de tela, a
labareda da Siderurgia, no meio de tubos doirados, inundando trevas de carvão.
Nada, em resumo, que se comparasse às noites de Angola, entre Malanje e Luanda:
o homem-motorista, estrada fora, de bife com batatas no papo, a mascote, que
era uma pretinha de tanga, a dar-a-dar no espelho, uma paz de capim no mundo
inteiro, e um quarto como deve ser, alugado na Mutamba à sua espera. E como se
não bastassem a barraca, a fome e o ventinho das gripes, o cego muito direito,
embrulhado no tabaco e nos óculos de mica, a insistir, na vozinha de grilo:
— Como é Lisboa, Artur?
Acabado o caldo os de África espalhavam-se no baldio, entre
o armazém e o pontão, a tropeçarem ao acaso nos desníveis de toupeira e
calhaus adormecidos. Um indiano de sandálias tinha acendido um candeeiro de
petróleo num contentor tombado, feito um balcão com caixotes, colado um cartaz
com a equipa do Belenenses na ferrugem, vendia fiado gasosas e cervejas mornas,
à espera que os clientes recebessem o subsídio do Governo, e o cego na dele: —
Como é Lisboa. Artur?
De ideias fixas o cego, pensou o homem cuja cabeça
continuava no canto oposto do mar, agarrada ao musseque onde crescera,
entretendo-se sozinho no quintal das traseiras, sob um braço de tília. De certo
modo, embora estivesse em Cabo Ruivo permanecia em África, com a mãe e as irmãs
mais velhas (o pai trabalhava há séculos no Congo e escrevia-lhes, no
Natal, postais de Boas Festas com selos esquisitos) e, por estranho que
parecesse, o que recordava melhor não eram coisas de adulto, já homem, já motorista dos holandeses dos
diamantes, a conduzir um camião para cá e para lá, de Malanje a Luanda e de
Luanda a Malanje, O que, pelo contrário, lhe aparecia mais vezes na lembrança,
em sonhos até, que é quando como os olhos estão fechados, a gente enxerga para
dentro, era o braço de tília e ele de calções, pasmado, a observar um sapo
numa greta de muro, um sapo parecido com o dono da cantina, onde a mãe o
mandava comprar arroz, favas ou cebola para o almoço de domingo, dia em que se
alargava um bocadinho no cozido. E no instante em que se principiava a sentir o
gosto da cenoura às rodelas na boca, lá vinha o cego com a cantilena do
costume;
— Como é Lisboa, Artur?
O cego era criatura de adereços: possuía uma bengala de
metal que se encolhia e aumentava como os metros articulados dos carpinteiros,
e nas raras ocasiões em que se levantava do balde caminhava de queixo ao alto,
varrendo os passos com aquela espécie de antena: ia do balde à arrecadação ali
perto, em que escondia um cobertor, e como, por assim dizer, era sempre noite
para ele, a bengala impedia-o de esbarrar em algerozes e de tombar em valados.
Talvez fosse o único, dos que chegaram de África, capaz de caminhar na cidade,
seguindo a haste mágica que devia ter um mapa das ruas no castão. Se quisesse
ia de certeza de Cabo Ruivo à Amadora (é um exemplo) sem uma hesitação para
amostra, pelo que o do baralho não entendia a pergunta, soprada, com o
ventinho da tarde, nos intervalos das cartas:
— Como é Lisboa, Artur?
E o indiano entrincheirado no caixote, a designar com o
desprezo do dedo as gaivotas, o hidroavião a desfazer-se e os pântanos do
Tejo, o indiano das gasosas, desiludido com a clientela que lhe não pagava, a
lembrar-se do seu café de dois andares em Moçamedes, onde os fazendeiros lhe
limpavam todas as tardes, e a pronto, as garrafas da loja, o indiano, inchado
de desgosto, a arrastar-se no contentor como um peru de Natal:
— Lisboa é esta infelicidade, amigo.
E, pelo gesto, não era só dos clientes que falava: era das
barracas, dos caldos, das camisas nas cordas, dos cachorros vadios sempre à
cata de sobras, e talvez que dele próprio também, que nos tempos de África nem
um automóvel americano lhe faltava, comprido como uma baleia, de dentes dos
cromados ao léu, com os olhos dos faróis arredondados de zanga contra os
imbondeiros. Falava das barracas, dos caldos, das camisas nas cordas, dos
cachorros e dele próprio, mas o desprezo do dedo, por acaso com um anel de
prata lavrada a alumiar-lhe o gesto, fixava-se no hidroavião que era um
esqueleto de morcego, com a pele de lona a desfazer-se debaixo da surpresa das
gaivotas. Fixava-se no hidroavião e o homem, atrás do dedo, a olhar as asas
tombadas, os flutuadores, que pareciam pantufas gigantescas de caminhar sobre
marés do Tejo, as cadeiras sem passageiros, a hélice de moinho de poço, o
lugar do piloto encostado ao volante, parecido com o dos camiões dos diamantes:
só não havia a mascote da pretinha de tanga, pendurada de uma guita, a
dar-a-dar no espelho. Isso, pensou o homem, não constituía problema: a questão
era uma pessoa instalar-se ao guiador, que em chegando a Luanda encontraria,
apesar da guerra que por lá faiscava, a destruir vivendas e jardins, uma
capelista pronta a vender uma mascote nova, de modo que alcançaria Malanje com
a boneca, toda contente, a dançar merengues no vidro. Quanto a colegas de
viagem, que de Lisboa a Malanje é um esticão, convidava o cego que, como ele,
não tinha caldo nem família, e de caminho dava uma volta sobre Cabo Ruivo e
explicava-lhe a cidade: monumentos, estátuas, igrejas, o carrossel do oito,
bairros de ricos, tudo. Largariam de manhã cedo, à hora que os albatrozes se
levantam das mimosas do lodo e o nevoeiro se esfuma em Alcochete, Nova Iorque
ou Paris, mostrando paus de fio e telhados tremendo à flor da água, e o
indiano do automóvel das Américas, incrédulo:
— Esse hidroavião não vale nada, coitado.
E realmente não parecia valer nada: em três semanas que o
homem ali estava, sentado diante de casa com o baralho de cartas, o hidroavião
quietinho, sem que um farrapo de lona se mexesse ao vento, sem que o leme da
cauda desse sinal de abano, sem que qualquer luz se acendesse na carlinga.
Resumindo: sem nenhuma vontade de voar. Um trambolho, decidiu o homem, uma
coisa inútil, uma gaivota morta, e continuou a pensar isto à medida que se
dirigia para ele, escoltado pelo cego dos óculos de mica, muito direito, muito
seguro do caminho, a tricotar a erva com a bengalinha de metal.
Sentou-o num lugar à janela, recomendou-lhe:
— Segura-te.
Ocupou o volante, experimentou os pedais, as alavancas e as
manivelas perras, e voltou a cabeça para informar o outro:
— Aguenta um bocadinho que já te mostro Lisboa.
Anos depois, muitos anos depois de o homem e o cego terem
levado sumiço, sabe-se lá para onde, o indiano continuava a jurar, a quem o
queria ouvir, que o hidroavião não saiu do mesmo sítio, não se deslocou um
milímetro, não se ergueu nem isto do pontão. É neste ponto que as divergências
começam: há quem garanta que os empregados da Câmara vieram com uma furgoneta e
transportaram para a sucata aquele morcego sem préstimo. Mas há também quem
afirme, pronto a jurar, que o hidroavião, com o homem e o cego lá dentro,
correu um nadinha na água, subiu a pino, e partiu, sobre Lisboa, na direcção de
Luanda, na direcção do mar. E acrescenta quem sabe que se via um braço, saído de
uma janela, a mostrar monumentos e igrejas a uns óculos de mica, e uma pretinha
de tanga, muito alegre, suspensa de um cordel, a dar-a-dar no pára-brisas em
acenos de adeus.
António Lobo Antunes
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