«O Direito ao Delírio»
Conto de Eduardo Galeano
607- «O DIREITO AO DELÍRIO»
Mesmo que não possamos adivinhar o tempo que virá, temos ao
menos o direito de imaginar o que queremos que seja.
As Nações Unidas tem proclamado extensas listas de Direitos
Humanos, mas a imensa maioria da humanidade não tem mais que os direitos de:
ver, ouvir, calar.
Que tal começarmos a exercer o jamais proclamado direito de
sonhar?
Que tal se delirarmos por um momentinho?
Ao fim do milénio vamos fixar os olhos mais para lá da
infâmia para adivinhar outro mundo possível.
O ar vai estar limpo de todo veneno que não venha dos medos
humanos e das paixões humanas.
As pessoas não serão dirigidas pelo automóvel, nem serão
programadas pelo computador, nem serão compradas pelo supermercado, nem serão
assistidas pela televisão.
A televisão deixará de ser o membro mais importante da
família.
As pessoas trabalharão para viver em lugar de viver para
trabalhar.
Se incorporará aos Códigos Penais o delito de estupidez que
cometem os que vivem por ter ou ganhar ao invés de viver por viver somente,
como canta o pássaro sem saber que canta e como brinca a criança sem saber que
brinca.
Em nenhum país serão presos os rapazes que se neguem a
cumprir serviço militar, mas sim os que queiram cumprir.
Os economistas não chamarão de nível de vida o nível de
consumo, nem chamarão qualidade de vida à quantidade de coisas.
Os cozinheiros não pensarão que as lagostas gostam de ser
fervidas vivas.
Os historiadores não acreditarão que os países adoram ser
invadidos.
O mundo já não estará em guerra contra os pobres, mas sim
contra a pobreza.
E a indústria militar não terá outro remédio senão
declarar-se quebrada.
A comida não será uma mercadoria nem a comunicação um
negócio, porque a comida e a comunicação são direitos humanos.
Ninguém morrerá de fome, porque ninguém morrerá de
indigestão.
As crianças de rua não serão tratadas como se fossem lixo,
porque não haverá crianças de rua.
As crianças ricas não serão tratadas como se fossem
dinheiro, porque não haverá crianças ricas.
A educação não será um privilégio de quem possa pagá-la e a
polícia não será a maldição de quem não possa comprá-la.
A justiça e a liberdade, irmãs siamesas, condenadas a viver
separadas, voltarão a juntar-se, voltarão a juntar-se bem de perto, costas com
costas.
Na Argentina, as loucas da Praça de Maio serão um exemplo de
saúde mental, porque elas se negaram a esquecer nos tempos de amnésia
obrigatória.
A perfeição seguirá sendo o privilégio tedioso dos deuses,
mas neste mundo, neste mundo avacalhado e maldito, cada noite será vivida como
se fosse a última e cada dia como se fosse o primeiro.
Eduardo Galeano
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