«Sobre o Amor»
Conto de Ferreira Gullar
610- «SOBRE O AMOR»
Houve uma época em que eu pensava que as pessoas deviam ter
um gatilho na garganta: quando pronunciasse — eu te amo —, mentindo, o gatilho
disparava e elas explodiam. Era uma defesa intolerante contra os levianos e que
refletia sem dúvida uma enorme insegurança de seu inventor. Insegurança e
inexperiência. Com o passar dos anos a ideia foi abandonada, a vida revelou-me
sua complexidade, suas nuanças. Aprendi que não é tão fácil dizer eu te amo sem
pelo menos achar que ama e, quando a pessoa mente, a outra percebe, e se não
percebe é porque não quer perceber, isto é: quer acreditar na mentira. Claro,
tem gente que quer ouvir essa expressão mesmo sabendo que é mentira. O
mentiroso, nesses casos, não merece punição alguma.
Por aí já se vê como esse negócio de amor é complicado e de
contornos imprecisos. Pode-se dizer, no entanto, que o amor é um sentimento
radical — falo do amor-paixão — e é isso que aumenta a complicação. Como pode
uma coisa ambígua e duvidosa ganhar a fúria das tempestades? Mas essa é a
natureza do amor, comparável à do vento: fluido e arrasador. É como o vento,
também às vezes doce, brando, claro, bailando alegre em torno de seu oculto
núcleo de fogo.
O amor é, portanto, na sua origem, liberação e aventura. Por
definição, anti-burguês. O próprio da vida burguesa não é o amor, é o
casamento, que é o amor institucionalizado, disciplinado, integrado na
sociedade. O casamento é um contrato: duas pessoas se conhecem, se gostam, se
sentem a traídas uma pela outra e decidem viver juntas. Isso poderia ser uma coisa
simples, mas não é, pois há que se inserir na ordem social, definir direitos e
deveres perante os homens e até perante Deus. Carimbado e abençoado, o novo
casal inicia sua vida entre beijos e sorrisos. E risos e risinhos dos
maledicentes. Por maior que tenha sido a paixão inicial, o impulso que os levou
à pretoria ou ao altar (ou a ambos), a simples assinatura do contrato já muda
tudo. Com o casamento o amor sai do marginalismo, da atmosfera romântica que o
envolvia, para entrar nos trilhos da institucionalidade. Torna-se grave. Agora
é construir um lar, gerar filhos, criá-los, educá-los até que, adultos,
abandonem a casa para fazer sua própria vida. Ou seja: se corre tudo bem, corre
tudo mal. Mas, não radicalizemos: há excepções — e dessas excepções vive a nossa
irrenunciável esperança.
Conheci uma mulher que costumava dizer: não há amor que
resista ao tanque de lavar (ou à máquina, mesmo), ao espanador e ao bife com
fritas. Ela possivelmente exagerava, mas com razão, porque tinha uns olhos
ávidos e brilhantes e um coração ansioso. Ouvia o vento rumorejar nas árvores
do parque, à tarde incendiando as nuvens e imaginava quanta vida, quanta
aventura estaria se desenrolando naquele momento nos bares, nos cafés, nos
bairros distantes. À sua volta certamente não acontecia nada: as pessoas em
suas respectivas casas estavam apenas morando, sofrendo uma vida igual à sua.
Essa inquietação bovariana prepara o caminho da aventura, que nem sempre
acontece. Mas dificilmente deixa de acontecer. Pode não acontecer a aventura
sonhada, o amor louco, o sonho que arrebata e funda o paraíso na terra.
Acontece o vulgar adultério – o assim chamado -, que é quase sempre
decepcionante, condenado, amargo e que se transforma numa espécie de vingança
contra a mediocridade da vida. É como uma droga que se toma para curar a
ansiedade e reajustar-se ao status quo. Estou curada, ela então se diz — e
volta ao bife com fritas.
Mas às vezes não é assim. Às vezes o sonho vem, baixa das
nuvens em fogo e pousa aos teus pés um candelabro cintilante. Dura uma tarde?
Uma semana? Um mês? Pode durar um ano, dois até, desde que as dificuldades
sejam de proporção suficiente para manter vivo o desafio e não tão duras que
acovardem os amantes. Para isso, o fundamental é saber que tudo vai acabar. O
verdadeiro amor é suicida. O amor, para atingir a ignição máxima, a entrega
total, deve estar condenado: a consciência da precariedade da relação
possibilita mergulhar nela de corpo e alma, vivê-la enquanto morre e morrê-la
enquanto vive, como numa desvairada montanha-russa, até que, de repente, acaba.
E é necessário que acabe como começou, de golpe, cortado rente na carne, entre
soluços, querendo e não querendo que acabe, pois o espírito humano não comporta
tanta realidade, como falou um poeta maior. E enxugados os olhos, aberta a
janela, lá estão as mesmas nuvens rolando lentas e sem barulho pelo céu deserto
de anjos. O alívio se confunde com o vazio, e você agora prefere morrer.
A barra é pesada. Quem conheceu o delírio dificilmente se
habitua à antiga banalidade. Foi Gogol, no Inspector Geral quem captou a
decepção desse despertar. O falso inspector mergulhara na fascinante impostura
que lhe possibilitou uma vida de sonho: homenagens, bajulações, dinheiro e até
o amor da mulher e da filha do prefeito. Eis senão quando chega o criado,
trazendo-lhe o chapéu e o capote ordinário, signos da sua vida real, e lhe diz
que está na hora de ir-se pois o verdadeiro inspector está para chegar. Ele se
assusta: mas então está tudo acabado? Não era verdade o sonho? E assim é: a
mais delirante paixão, terminada, deixa esse sabor de impostura na boca, como
se a felicidade não pudesse ser verdade. E no entanto o foi, e tanto que é
impossível continuar vivendo agora, sem ela, normalmente. Ou, como diz Chico
Buarque: sofrendo normalmente.
Evaporado o fantasma, reaparece em sua banal realidade o guarda-roupa,
a cómoda, a camisa usada na cadeira, os chinelos. E tudo impregnado da ausência
do sonho, que é agora uma agulha escondida em cada objecto, e te fere,
inesperadamente, quando abres a gaveta, o livro. E te fere não porque ali
esteja o sonho ainda, mas exactamente porque já não está: esteve. Sais para o
trabalho, que é preciso esquecer, afundar no dia-a-dia, na rotina do dia,
tolerar o passar das horas, a conversa burra, o cafézinho, as notícias do
jornal. Edifícios, ruas, avenidas, lojas, cinema, aeroportos, ónibus,
carrocinhas de sorvete: o mundo é um incomensurável amontoado de inutilidades.
E de repente o táxi que te leva por uma rua onde a memória do sonho paira como
um perfume. Que fazer? Desviar-se dessas ruas, ocultar os objectos ou, pelo
contrário, expor-se a tudo, sofrer tudo de uma vez e habituar-se? Mais dia
menos dia toda a lembrança se apaga e te surpreendes gargalhando, a vida vibrando
outra vez, nova, na garganta, sem culpa nem desculpa. E chegas a pensar:
quantas manhãs como esta perdi burramente! O amor é uma doença como outra
qualquer.
E é verdade. Uma doença ou pelo menos uma anormalidade. Como
pode acontecer que, subitamente, num mundo cheio de pessoas, alguém meta na
cabeça que só existe fulano ou fulana, que é impossível viver sem essa pessoa?
E reparando bem, tirando o rosto que era lindo, o corpo não era lá essas
coisas… Na cama era regular, mas no papo um saco, e mentia, dizia tolices, e
pensar que quase morro!…
Isso dizes agora, comendo um bife com fritas diante do
espectáculo vesperal dos cúmulos e nimbos. Em paz com a vida. Ou não.
Ferreira Gullar
Sem comentários:
Enviar um comentário