terça-feira, 15 de setembro de 2015

OUTROS CONTOS

«A Abóbada», por Alexandre Herculano.

Por aqui- OUTROS CONTOS/ [I Capítulo/ O Cego]
Por aqui- OUTROS CONTOS/ [II Capítulo/ Mestre Ouguet]

«A Abóbada»
Mosteiro da Batalha

615- «A ABÓBADA»

[III Capítulo/ O Auto]

Junto a uma das colunas da Igreja de Santa Maria da Vitória estava alevantado um estrado, sobre o qual se via uma grande e maciça cadeira de espaldas, feita de castanho e lavrada de curiosos bestiães e lavores. Era este o lugar onde el-rei devia assistir ao auto da adoração dos reis. No mesmo estrado havia vários assentos rasos, para neles se assentarem os fidalgos e cavaleiros que o acompanhavam. Defronte do estrado e colocado ao pé do arco da Capela do Fundador, corria para um e outro lado da parede um devoto presépio, meio erguido do chão e representando serranias agrestes, ao sopé das quais estava armada uma espécie de choça, onde, sobre a tradicional manjedoura, se via reclinado o Menino Jesus e, de joelhos junto dele, a Virgem e S. José, acompanhados de vários anjos, em acto de adoração. Diante da cabana e no mesmo nível, corria um largo e grosseiro cadafalso de muitas tábuas, para o qual, por um dos lados, davam serventia duas grossas e compridas pranchas de pinho, por onde deviam subir as personagens do auto.

Tanto que el-rei saiu da porta do cruzeiro que dá para a sacristia, encaminhou-se pela igreja abaixo e veio assentar-se na cadeira de espaldas, conduzido por Frei Lourenço, que, com todos os modos de homem cortesão, ofereceu os assentos rasos aos demais cavaleiros e fidalgos.

Pela mesma porta da sacristia saíram logo as primeiras figuras do auto, as quais, descendo ao longo da nave, subiram ao cadafalso pelas pranchas de que fizemos menção.

Estas primeiras figuras eram seis, formando uma espécie de prólogo ao auto. Três que vinham adiante representavam a Fé, a Esperança e a Caridade; após elas, vinham a Idolatria, o Diabo e a Soberba; todas com suas insígnias mui expressivas e a ponto; mas o que enlevava os olhos da grande multidão dos espectadores era o Diabo, vestido de peles de cabra, com um rabo que lhe arrastava pelo tablado e seu forcado na mão, mui vistoso e bem-posto.

Feitas as vénias a el-rei, a Idolatria começou seu arrazoado contra a Fé, queixando-se de que ela a pretendia esbulhar da antiga posse em que estava de receber cultos de todo o género humano, ao que a Fé acudia com dizer que, ab initio, estava apontado o dia em que o império dos ídolos devia acabar, e que ela Fé não era culpada de ter chegado tão asinha esse dia. Então o Diabo vinha, lamentando-se de que a Esperança começasse de entrar nos corações dos homens; que ele Diabo tinha jus antiquíssimo de desesperar toda a gente; que se dava ao demo por ver as perrarias que a Esperança lhe fazia; e, com isto, careteava, com tais momos e trejeitos, que o povo ria a rebentar, o mais devotamente que era possível. Ainda que o Diabo fizesse de truão da festa, nem por isso a sua contendora, a Esperança, dava descargo de si com menos compostura do que a tão honrada virtude cumpria, dizendo que ela obedecia ao Senhor de todas as cousas, e que este, vendo e considerando os grandes desvairos que pelo mundo iam, e como os homens se arremessavam desacordadamente no Inferno, a mandara para lhes apontar o direito caminho do Céu; e por aqui seguia com razões mui devotas e discretas, que moveriam a devotíssimas lágrimas os ouvintes, se a devoto riso os não movesse o Diabo com seus trejeitos e esgares, como, com bastante agudeza, reflecte o autor da antiga crónica de que fielmente vamos transcrevendo esta verídica história. A Soberba, que estava impando, ouvidas as razões da Esperança, travou dela mui rijo e, com voz torvada e rosto aceso, começou de bradar que esta dona era sandia, porque entendera enganar os homens com vaidades de incertos futuros e sustentá-los com fumo; que pretendia, contra toda a ordem de boa razão, que a gente vil houvesse igual quinhão no Céu com os senhores e cavaleiros, o que era descomunal ousadia e fora da geral opinião e direito, indo por aqui discursando com remoques mui orgulhosos, como a Soberba que era. Não sofreu, porém, o ânimo da Caridade tão descomposto razoar da sua figadal inimiga, e lho atalhou com tomar a mão naquele ponto e notar que os filhos de Adão eram todos uns aos olhos do Todo-Poderoso; que a Soberba inventara as vãs distinções entre os homens, e que à vida eternal mais amorosamente eram os pequenos e humildosos chamados, do que os potentes, o que provou claramente à sua contrária com bastos textos das santas escrituras, de que a Soberba ficou mui corrida, por não ter contra tão grande autoridade resposta cabal. E acabado o dizer da Caridade, um anjo subiu ao cadafalso, para dar sua sentença, que foi mandar recolher ao abismo a Idolatria, o Diabo e a Soberba, e anunciar às três virtudes que as ia elevar ao Céu, onde reinariam em glória perdurável. Então o Diabo, fazendo horribilíssimos biocos, pegou pela mão às suas companheiras e fugiu pela igreja fora, com grandes apupos e doestos dos espectadores. Guiando as três virtudes, o anjo (por uma daquelas liberdades cénicas que ainda hoje se admitem, quando, nas vistas de marinha, o actor que vem embarcado desce dois ou três degraus das ondas de papelão para a terra de soalho), em vez de subir ao Céu, como anunciara, desceu pelas pranchas que davam para o pavimento da igreja, e, caminhando ao longo da nave, se recolheu à sacristia, acompanhado da Fé, Esperança e Caridade, tão vitoriadas pelos espectadores, como apupados tinham sido o Diabo e as suas infernais companheiras.

Ainda bem não eram recolhidas estas figuras, quando, pela mesma porta do cruzeiro, saíram os três reis magos, ricamente vestidos ao antigo, com roupas talares de fina tela, mantos reais, e coroas na cabeça. Adiante vinha Baltasar, homem já velho, mas bem-disposto de sua pessoa, com aspecto grave e autorizado e com umas barbas, posto que brancas, bem povoadas; logo após ele, vinha o rei Belchior, e a este seguia-se Gaspar. Traziam todos suas bocetas, em que eram guardados os preciosos dons que ao recém-nascido vinham de longes terras ofertar. Subindo ao cadafalso, disseram como uma estrela os guiara até Jerusalém e como desta cidade, depois de mui trabalhado e duvidoso caminho, tinham acertado em vir a Belém e, com grande folgança, encontravam aí o presepe, para fazer seu ofertório, o que, em verdade, era cousa mui piedosa de ouvir. O rei Baltasar, como mais velho e sisudo, foi o primeiro que ajoelhou junto do presepe e, com voz mui entoada e depondo ante o Menino seus presentes, disse:

Santo filho de David,
Divinal
Salvador da triste raça
Humanal,
Que descestes lá do assento
Celestial,
Vós da glória imperador
Eternal,
Aceitai este ofertório
Não real,
Pobre si. É quanto posso:
Não hei al.
O que fora compridoiro
De auto tal
Bem o sei. Andei más vias,
Por meu mal;
Que dez dias prantei tendas
De arraial
Nas soidões fundas d'Arabia:
Mui fatal.
Meus camelos há tisnado
Sol mortal;
E um, de vento do deserto,
Vendaval.
O presente que aí vedes
Pouco val;
É somente algum incenso
Oriental;
Que o tesouro que eu trazia,
Mui cabal
Soterrou-mo a tempestade
No areal.

E com isto, o venerável rei Baltasar, depois de fazer sua oração em voz baixa, ergueu-se, e o rei Belchior, ajoelhando e depondo a urna que trazia nas mãos ante o presepe, disse:

Vindo sou lá do Cataio
A adorar-vos, alto infante,
Redentor:
Não me pôs na alma desmaio
Ser de terra tão distante
Rei, senhor!
É bem torva a minha face:
Minhas mãos tingidas são
De negrura;
Mas na terra onde o Sol nace
Mais se cobre o coração
De tristura;
Porque o torpe Mafamede
Sua crença mui sandia
Mandou lá,
E não há quem dela arrede
Essa gente, que aperfia
Em ser má.
Real tronco de Jessé,
Mui fermoso, se eu pudera,
Vos levara,
E, convosco, à vossa fé
Os incréus eu convertera,
E os salvara.
Ora quero ver se peito
São José, que é vosso padre...

Um sussurro, que começara no momento em que o rei preto ajoelhou e que mal deixara ouvir a precedente loa (obra mui prima de certo leigo, afamado jogral daquele tempo), cresceu neste momento a tal ponto, que o corista que fazia o papel de Belchior não pôde continuar, com grande dissabor do poeta, que via murchar a coroa de louros que neste auto esperava obter. O povo agitava-se, e do meio dele saíam gritos descompostos, que aumentavam o tumulto. El-rei tinha-se erguido, e juntamente os demais cavaleiros e fidalgos: todos indagavam a origem do motim; mas não havia acertar com ela. Enfim, um homem, rompendo por entre a multidão, sem touca na cabeça, cabelos desgrenhados, boca torcida e coberta de escuma, olhos esgazeados, saltou para dentro da teia, que fazia um claro em roda do tablado. Apenas se viu dentro daquele recinto, ficou imóvel, com os braços estendidos para o tecto, as palmas das mãos voltadas para cima, e a cabeça encolhida entre os ombros, como quem, cheio de horror, via sobre si desabar aquelas altíssimas e maciças arcarias.

– Mestre Ouguet! – exclamou el-rei espantado.

– Mestre Ouguet! – gritou Frei Lourenço, com todos os sinais de assombro.

– Mestre Ouguet! – repetiram os cavaleiros e fidalgos, para também dizerem alguma cousa.

– Quem fala aqui no meu nome? – rosnou David Ouguet, com voz comprimida e sepulcral. – Malvados! Querem assassinar-me?! Querem arrojar sobre mim esse montão de pedras, como se eu fora um cão judeu, que merecesse ser apedrejado?! Oh meu Deus, salvai a minha alma! – E depois de breve silêncio, em que pareceu tomar fôlego: – Não vos chegueis aí! – bradou ele. – Não vedes essas fendas, profundas como o caminho do Inferno? São escuras: mas, através delas, lá enxergo eu o luar! 

Vós não, porque vossos olhos estão cegos... porque o vosso bom nome não se escoa por lá!... Cegos?... Não vós!... mas ele! Ele é que se ri e folga em sua orgulhosa soberba! Vede como escancara aquela boca hedionda; como revolve, debaixo das pálpebras cobertas de vermelhidão, aqueles olhos embaciados!... Maldito velho, foge diante de mim!... Maldito, maldito!... Curvada já no centro... senti-a escaliçar e ranger... Estavas tu assentado em cima dela? Feiticeiro!... Anda, que eu bem ouço as tuas gargalhadas!... Não há um raio que te confunda?... Não!

Dizendo isto, mestre Ouguet cobriu a cara com as mãos e ficou outra vez imóvel.

El-rei, os cavaleiros, os padres mais dignos que estavam de roda do estrado real, os reis magos, os populares, todos olhavam pasmados para o arquitecto, que assim interrompera a solenidade do auto. Silêncio profundo sucedera ao ruído que a aparição daquele homem desvairado excitara. Milhares de olhos estavam fitos nesse vulto, que semelhava uma larva de condenado saída das profundezas para turbar a festa religiosa. Por mais de um cérebro passou este pensamento; em mais de uma cabeça os cabelos se eriçaram de horror; mas, dos que conheciam mestre Ouguet, nenhum duvidou de que fosse ele em corpo e alma. Que proveito tiraria o demónio de tomar a figura do arquitecto para fazer uma das suas irreverentes diabruras? Só uma suposição havia que não era inteiramente desarrazoada: David Ouguet podia estar possesso, em consequência de algum grave pecado; pecado que, talvez, tivesse omitido na última confissão, que fizera na véspera de Natal. Isto era possível e, até, natural; que não vivia ele a mais justificada vida. Supor que endoidecera parecia grande despropósito; porque nenhum motivo havia para tal lhe acontecer, quando merecera os gabos de el-rei e de todos, por ter levado a cabo a grandiosa obra que lhe estava encomendada. Estes e outros raciocínios, hoje ridículos, mas, segundo as ideias daquela época, bem fundados e correntes, fazia o reverendo padre-procurador Frei Joane, que tinha vindo assistir ao auto e estava em pé atrás do estrado, perto de Frei Lourenço Lampreia. Revolvendo tais pensamentos, no meio daquele silêncio ansioso em que todos estavam, não pôde ter-se que, pé ante pé, se não chegasse ao prior e lhos comunicasse em voz baixa, ao ouvido.

– Não vou fora disso – respondeu o prior, que, enquanto o outro frade lhe falara, estivera dando à cabeça, em sinal de aprovação. – O olhar espantado, o escumar, o estorcer os membros e o falar não sei de que feiticeiro, tudo me induz a crer que o demónio se chantou naquele miserável corpo, como vós aventais. Se assim é, pouco juízo mostrou desta vez o diabo em vir com seus esgares e tropelias atalhar o mui devoto auto da adoração. Examinemos se assim é, e eu vo-lo darei bem castigado.

Dizendo isto, Frei Lourenço chegou-se a el-rei e disse-lhe o que quer que fosse. Ele escutou- -o atentamente e, tanto que o prior acabou, assentou-se outra vez na sua cadeira de espaldas e fez sinal com a mão aos fidalgos e cavaleiros para que também se assentassem.

Frei Lourenço, acompanhado de mais alguns frades, subiu pela igreja acima e entrou na sacristia. Todos ficaram esperando, silenciosos e imóveis como mestre Ouguet, o desfecho desta cena, que se encaixava no meio das cenas do auto.

Tinham passado obra de três credos, quando, saindo outra vez da porta da sacristia, Frei Lourenço voltou pela igreja abaixo, revestido com as vestes sacerdotais, chegou à teia, abriu-a e encaminhou-se para mestre Ouguet. Depois, olhando de roda e fazendo um aceno de autoridade, disse:

– Ajoelhai, cristãos, e orai ao Padre Eterno por este nosso irmão, tomado de espírito imundo.

A estas palavras, rei, cavaleiros, frades, povo, tudo se pôs de joelhos. E ouvia-se ao longo das naves o sussurro das orações.

Só mestre Ouguet ficou sem se bulir, com o rosto metido entre as mãos.

O prior lançou a estola à roda do pescoço do possesso e queria atar os três nós do ritual; mas o paciente deu um estremeção e, tirando as mãos da cara, fez um gesto de horror e gritou:

– Frade abominável, também tu és conluiado com o cego?

– Não há dúvida! – disse por entre os dentes o prior. – Mestre Ouguet está endemoninhado.

Tirando então da manga um pergaminho, em que estavam escritas várias cousas de doutrina, pô-lo sobre a cabeça do mestre, fazendo sobre ele três vezes o sinal-da-cruz.

David Ouguet soltou então uma destas risadas nervosas que horrorizam e que tão frequentes são, quando o padecimento moral sobrepuja as forças da natureza.

– Cão tinhoso – bradou Frei Lourenço –, espírito das trevas, enganador, maldito, luxurioso, insipiente, ébrio, serpe, víbora, vil e refece demónio; enfim, castelhano(6). Em nome do Criador e senhor de todas as cousas, te mando que repitas o credo ou saias deste miserável corpo.

Mestre Ouguet ficou imóvel e calado.

– Não cedes?! – prosseguiu o prior. – Recorrerei ao sétimo, ao mais terrível exorcismo. Veremos se poderás a teu salvo escarnecer das criaturas feitas à imagem e semelhança de Deus.

Depois de várias cerimónias e orações, Frei Lourenço chegou-se ao pobre irlandês e começou a repetir o conjuro, fazendo-lhe uma cruz sobre a testa, a cada uma das seguintes palavras, que proferia lentamente:

– Hel – Heloym – Heloa – Sabaoth – Helyon – Esereheye – Adonay – Iehova – Ya – Thetagrammaton – Saday – Messias – Hagios – Ischiros – Otheos – Athanatos – Sother – Emanuel – Agla...

– Jesus! – bradou a uma voz toda a gente que estava na igreja.

– Diabo! – gritou mestre Ouguet; e caiu no chão como morto.

E houve um momento de angústia e terror, em que todos os corações deixaram de bater, e em que todos os olhos, braços e pernas ficaram fixos, como se fossem de bronze.

Um ruído, semelhante ao de cem bombardas que se houvessem disparado dentro do mosteiro e que soara da banda da sacristia, tinha arrancado aquele grito de mil bocas e convertido em estátuas essa multidão de povo.

Há situações tão violentas que, se durassem, a morte se lhes seguiria em breve; mas a providente Natureza parece restaurar com dobrada energia o vigor físico e espiritual do homem depois destes abalos espantosos. Então, melhor que nunca, ele sente em si que, posto que despenhado, não perdeu a sublimidade da sua origem divina. A reacção segue a acção; e quanto mais tímido o indivíduo se mostrou, mais viva é a consciência da própria força, que, depois disso, renasce com o destemor e ousadia.

Foi o que sucedeu a D. João I, aos cavaleiros do seu séquito e ao povo que estava na Igreja de Santa Maria, passado aquele instante de sobrenatural pavor. A terribilidade da cerimónia que Frei Lourenço executava, o ruído inesperado que rompera o exorcismo, o grito blasfemo do arquitecto, no momento de cair por terra, o lugar, a hora, eram cousas que, reunidas, fariam pedir confissão a uma grande manada de enciclopedistas e que, por isso, não é de admirar fizessem impressão vivíssima em homens de um século, não só crente, mas também supersticioso. Todavia, o ânimo indomável do Mestre de Avis brevemente fez cobrar alento a todos os que aí estavam.

– É, em verdade, descomunal maravilha o que temos visto e ouvido – disse ele com voz firme, voltando-se para os que o rodeavam –; mas cumpre indagar donde procede o ruído que veio interromper o mui devoto padre-prior no exercício de seu ministério tremendo. Soou esse medonho estampido da banda do claustro; vamos examinar o que seja: se diabólico, estamos na casa de Deus, e a Cruz é nosso amparo; se natural, que haverá no mundo capaz de pôr espanto em cavaleiros portugueses?

Dizendo isto, el-rei desceu do estrado e encaminhou-se para a sacristia. Os cavaleiros da comitiva, os frades, os três reis magos (que ainda estavam em pé sobre o tablado) e grande parte do povo tomaram o mesmo caminho.

El-rei ia adiante, e o prior era o que mais de perto o seguia. Cruzaram o arco gótico que dava comunicação para a sacristia: aí tudo estava em silêncio; uma lâmpada que pendia do tecto dava luz frouxa e mortiça, e, a esta luz incerta e baça, encaminharam-se para a porta do Capítulo. Ao chegar a ela, todos recuaram de espanto, e um segundo grito soou e veio morrer sussurrando pelas naves da igreja quase deserta:

– Jesus!

As portas haviam estoirado nos seus grossíssimos gonzos, e muito cimento solto e pedras quebradas tinham rolado pelo portal fora, entulhando-lhe quase um terço da altura. Olhando para o interior daquela imensa quadra, não se viam senão enormes fragmentos de cantos lavrados, de laçarias, de cornijas, de voltas e de relevos: a Lua, que passava tranquila nos céus, reflectia o seu clarão pálido sobre este montão de ruínas, semelhantes aos monumentos irregulares de um cemitério cristão; e, por cima daquele temeroso silêncio, passava o frio leste da noite e vinha bater nas faces turbadas dos que, apinhados na sacristia, contemplavam este lastimoso espectáculo.

Dos olhos de el-rei e de Frei Lourenço caíram algumas lágrimas, que eles debalde tentavam reprimir.

A abóbada do Capítulo, acabada havia vinte e quatro horas, tinha desabado em terra!

Alexandre Herculano

(Amanhã IV Capítulo/ Um Rei Cavaleiro)
Poet'anarquista

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