«O Velho e o Mar»
Romance de Ernest Hemingway
608- «O VELHO E O MAR»
[Excerto]
[Excerto]
Era um velho que pescava sozinho num esquife na Corrente do Golfo, e saíra
havia já por oitenta e quatro dias sem apanhar um peixe. Nos primeiros quarenta
dias um rapaz fora com ele. Mas, após quarenta dias sem um peixe, os pais do
rapaz disseram a este que o velho estava definitivamente e declaradamente salao
, o que é a pior forma de azar, e o rapaz fora por ordem deles para outro barco
que na primeira semana logo apanhou três belos peixes. Fazia tristeza ao rapaz
ver todos os dias o velho voltar com o esquife vazio e sempre descia a ajudá-lo
a trazer as linhas arrumadas ou o croque e o arpão e a vela enrolada no mastro.
A vela estava remendada com quatro velhos sacos de farinha e assim ferrada
parecia o estandarte da perpétua derrota.
O velho era magro e seco, com profundas rugas na parte de trás do pescoço. As
manchas castanhas do benigno cancro da pele que o sol provoca ao reflectir-se
no mar dos trópicos viam-se-lhe no rosto. As manchas iam pelos lados da cara
abaixo e as mãos dele tinham as cicatrizes profundamente sulcadas que o manejo
das linhas com peixe graúdo dá. Mas nenhuma destas cicatrizes era recente. Eram
antigas como erosões num deserto sem peixes.
Tudo nele e dele era velho, menos os olhos, que eram da cor do mar e alegres e
não vencidos.
- Santiago - disse o rapaz, ao virem da praia para onde fora alado o esquife.-
Posso tornar a ir contigo. Já ganhámos algum dinheiro.
O velho ensinara o rapaz a pescar e o rapaz gostava muito dele.
Navegavam bem, e o velho mergulhou as mãos na água salgada e
fez por manter claras as ideias. Havia altos cúmulos e bastantes cirros por
cima deles, e o velho sabia que assim a brisa duraria a noite inteira. Fitava
constantemente o peixe, para ter a certeza de que era verdade. Não passara uma
hora quando o primeiro tubarão o mordeu.
O tubarão não era acidental. Viera de muito fundo, ao dispersar-se no mar a
escura nuvem de sangue. Ascendera tão rapidamente e tão absolutamente sem
cautelas, que abriu a superfície das águas azuis e apareceu ao sol. Caiu depois
no mar e farejou e começou a nadar na esteira do esquife e do peixe.
Por vezes perdia o cheiro. Tornava, porém, a dar com ele, ou a sentir apenas um
vago rasto, e nadava rapidamente na esteira. Era um enorme "mako",
feito para nadar tão velozmente como o mais veloz peixe dos mares, e tudo nele
era belo excepto as queixa-das. O dorso era azul como o de um espadarte, a
barriga prateada, e os flancos macios e belos. Era tal qual um espadarte, com a
diferença das medonhas queixadas que levava cerradas ao nadar veloz, logo
abaixo da superfície, com a alta barbatana dorsal anavalhando as águas sem
vacilar. Dentro dos lábios apertados, as oito ordens de dentes inclinavam-se
para o interior da boca. Não eram os vulgares dentes piramidais da maior parte
dos tubarões. Eram como os dedos de uma mão humana quando crispada em garra.
Eram quase tão compridos como os dedos do velho e afiados como navalhas dos
dois lados. Eis um peixe feito para comer todos os peixes do mar, mesmo os
velozes e fortes e bem armados, que outro inimigo não têm.
Aí vinha ele por ter
cheirado melhor, e a barbatana dorsal azul cortava as águas.
Quando o velho o viu vir, reconheceu que era um tubarão que nada temia e havia
de fazer exactamente o que lhe apetecia.
Ernest Hemingway
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