«A Abóbada», por Alexandre Herculano.
«A Abóbada»
Mosteiro da Batalha
613- «A ABÓBADA»
[I Capítulo/ O Cego]
O dia 6 de Janeiro do ano da Redenção 1401 tinha amanhecido
puro e sem nuvens. Os campos, cobertos aqui de relva, acolá de searas, que
cresciam a olhos vistos com o calor benéfico do Sol, verdejavam ao longe, ricos
de futuro para o pegureiro e para o lavrador. Era um destes formosíssimos dias
de Inverno mais gratos que os do Estio, porque são de esperança, e a esperança
vale mais do que a realidade; destes dias, que Deus só concedeu aos países do
Ocidente, em que os raios do Sol, que começa a subir na eclíptica, estirando-se
vívidos e trémulos por cima da terra enegrecida pela humidade, e errando por
entre os troncos pardos dos arvoredos despidos pelas geadas, se assemelham a um
bando de crianças, no primeiro viço da vida, a folgar e a rolar-se por cima da
campa, sobre a qual há muito sussurrou o último ai da saudade, e que invadiram
os musgos e abrolhos do esquecimento. Era um destes dias antipáticos aos poetas
ossiânico-regelo-nevoentos, que querem fazer-nos aceitar como cousa mui poética destes dias, enfim, em que a Natureza sorri como a furto, rasgando o denso véu da estação das tempestades.
Esses gelos do Norte, esses brilhantes
Caramelos dos topes das montanhas;
sem se lembrarem de que
Do sol do Meio-Dia aos raios vívidos,
Parvos! ― se lhes derretem: a brancura
Perdem co'a nitidez, e se convertem
De lúcidos cristais em água chilre;
No adro do Mosteiro de Santa Maria da Vitória, vulgarmente
chamado da Batalha, fervia o povo, entrando para a nova igreja, que de mui
pouco tempo servia para as solenidades religiosas. Os frades dominicanos, a
quem el-rei D. João I tinha doado esse magnífico mosteiro, cantavam a missa do
dia debaixo daquelas altas abóbadas, onde repercutiam os sons do órgão e os
ecos das vozes do celebrante, que entoava os kyries.
Mas não era para ouvir a missa conventual que o povo se
escoava pelo profundo portal do templo para dentro do recinto sonoro daquela
maravilhosa fábrica; era para assistir ao auto da adoração dos reis, que com
grande pompa se havia de celebrar nessa tarde dentro da igreja e diante do rico
presépio que os frades tinham alevantado junto do arco da Capela do Fundador,
então apenas começada. A concorrência era grande, porque os habitantes da
Canoeira, de Aljubarrota, de Porto de Mós e dos mais lugares vizinhos,
desejosos de ver tão curioso espectáculo, tinham deixado desertas as povoações
para vir povoar por algumas horas o ermo do mosteiro. Aprazível cousa era o
ver, descendo dos outeiros para o vale por sendas torcidas, aquelas multidões,
vestidas de cores alegres e semelhantes, no seu complexo, a serpentes imensas,
que, transpondo as assomadas, se rolassem pelas encostas abaixo, reflectindo ao
longe as cores variegadas da pele luzidia e lúbrica. Atravessando a pequena
planície onde avultava o mosteiro, passava o rio Lena, cuja corrente tinham
tornado caudal as chuvas da primeira metade da estação invernosa.
No campo contíguo ao edifício, aqui e acolá, alevantavam-se
casarias irregulares, algumas fechadas com suas portas, outras apenas cobertas
de madeira e abertas para todos os lados, à maneira de simples telheiros. As
casas fechadas e reparadas contra as injúrias do tempo eram as moradas dos
mestres e artífices que trabalhavam no edifício: debaixo dos telheiros viam-se
nuns pedras só desbastadas, noutros algumas onde se começavam a divisar
lavores, noutros, enfim, pedaços de cantaria, em que os mais hábeis escultores
e entalhadores já tinham estampado os primores dos seus delicados cinzéis. Mas
o que punha espanto era a inumerável porção de pedras, lavradas, polidas e prontas
para serem colocadas em seus lugares, que jaziam espalhadas pelo terreiro que,
ao redor do edifício, se alargava por todos os lados: mainéis rendados, peças
dos fustes, capitéis góticos, laçarias de bandeiras, cordões de arcadas, aí
estavam tombados sobre grossas zorras ou ainda no chão, endurecido pelo
contínuo perpassar de trabalhadores, oficiais e mais obreiros desta maravilhosa
fábrica. Quem de longe olhasse para aquele extenso campo, alastrado de tantos
primores de escultura, julgara ver o assento de uma cidade antiquíssima,
arrasada pela mão dos homens ou dos séculos, de que só restava em pé um
monumento, o mosteiro. E todavia, esses que pareciam restos de uma antiga
Balbek não eram senão algumas pedras que faltavam para o acabamento dum
convento de frades dominicanos, o Convento de Santa Maria da Vitória,
vulgarmente chamado a Batalha!
Um quadrante de pedra, assentado em um canto do adro,
apontava meio-dia. A igreja tinha sorvido dentro do seu seio desmesurado os
habitantes das próximas povoações, e de todo o ruído e algazarra que poucas
horas antes soava por aqueles contornos, apenas traspassavam pelas frestas e
portas do templo os sons do órgão, soltando a espaços as suas melodias, que
sussurravam e morriam ao longe, suaves como pensamento do Céu.
Não estava, porém, inteiramente ermo o terreiro da frontaria
do edifício. Assentado sobre um troço de fuste, com os pés ao sol e o resto do
corpo resguardado dos seus ardentes raios pela sombra de um telheiro, a qual se
começava a prolongar para o lado do oriente, via-se um velho, venerável de
aspecto, que parecia embrenhado em profundas meditações. Pendia-lhe sobre o
peito uma comprida barba branca: tinha na cabeça uma touca foteada, um gibão
escuro vestido, e sobre ele uma capa curta ao modo antigo. A luz dos olhos
tinha-lha de todo apagado a velhice; mas as suas feições revelavam que dentro
daqueles membros trémulos e enrugados morava um ânimo rico de alto imaginar. As
faces do velho eram fundas, as maçãs do rosto elevadas, a fronte espaçosa e
curva e o perfil do rosto quase perpendicular. Tinha a testa enrugada, como
quem vivera vida de contínuo pensar, e, correndo com a mão os lavores da pedra
sobre que estava assentado, ora carregando o sobrolho, ora deslizando as rugas
da fronte, repreendia ou aprovava com eloquência muda os primores ou as
imperfeições do artífice que copiara à ponta de cinzel aquela página do imenso
livro de pedra a que os espíritos vulgares chamam simplesmente o Mosteiro da
Batalha.
Enquanto o velho cismava sozinho e palpava o canto, subtilmente
lavrado, sobre que repousava os membros entorpecidos, à portaria do mosteiro,
que perto dali ficava, outras figuras e outra cena se viam. Dois frades estavam
em pé no limiar da porta e altercavam em voz alta: de vez em quando, pondo-se
nos bicos dos pés e estendendo os pescoços, parecia quererem descobrir no
horizonte, que as cumeadas dos montes fechavam, algum objecto; depois de assim
olharem um pedaço, encolhiam os pescoços e, voltando-se um para o outro,
travavam de novo renhida disputa, que levava seus visos de não acabar.
― Oh homem! ― dizia um dos dois frades, a quem a tez
macilenta e as barbas e cabelos grisalhos davam certo ar de autoridade sobre o
outro, que mostrava nas faces coradas e cheias e na cor negra da barba povoada
e revolta mais vigor de mocidade. ― Já disse a vossa reverência que el- -rei me
escreveu, de seu próprio punho, que viria assistir ao auto da adoração dos reis
e, de caminho, veria a Casa do Capítulo, a que ontem mestre Ouguet mandou tirar
os simples que sustentavam a abóbada.
― E nego eu isso? ― replicou o outro frade. ― O que digo é que me parece impossível que el-rei venha, de feito, conforme a vossa paternidade prometeu em sua carta. Há muito que lá vai o meio-dia: daqui a pouco tocará a vésperas, e às duas por três é noite. Não vedes, padre-mestre, a que horas virá a acabar o auto? E este povo, este devoto povo que aí está, que aí vem, há-de ir com o escuro por esses descampados e serras, com mulheres, com raparigas...
― Tá, tá ― interrompeu o prior. ― Temos luar agora, e
vão de consum. O caso não é esse, padre-procurador, o caso é se está tudo
aviado para agasalharmos el-rei e os de sua companha.
― Oh lá, quanto a isso, nada falta. Desde ontem que tenho
tido tanto descanso como hoste ou cavalgada de castelhanos diante das lanças do
Condestável; o pior é que, segundo me parece, e dizei o que quiserdes, opus
et oleum perdidi.
― Não falta quem tarda: el-rei não quebrará a palavra ao seu
antigo confessor. O que quero é que todos os noviços e coristas que têm de
fazer suas representações no auto estejam a ponto e vestidos, para ele começar
logo que sua senhoria chegue.
― Nada receeis, que tudo está preparado; do que duvido é de
que comecemos, se por el-rei houvermos de esperar.
O frade mais velho fez, a estas palavras, um gesto de
impaciência e, sem dar resposta ao seu pirrónico interlocutor, estendeu outra
vez o gasnate para a banda da estrada, fazendo com a extremidade do hábito uma
espécie de sobrecéu para resguardar os olhos dos raios do Sol, que, já muito
inclinado para o ocidente, batia de chapa no portal onde os dois reverendos
estavam altercando.
Porém, meio descoroçoado, o dominicano logo abaixou os
olhos: nem o mínimo vulto se enxergava no horizonte; e neste abaixar de olhos
viu o cego, que estava ainda assentado sobre o fuste da coluna.
Para escapar, talvez, às reflexões do seu confrade, o reverendo bradou ao velho:
― Oh lá, mestre Afonso Domingues, bem aproveitais o
soalheiro! Não vos quero eu mal por isso; que um bom sol de Inverno vale, na
idade grave, mais que todos os remédios de longa vida que em seus alforges
trazem por aí os físicos.
Dizendo e fazendo, o reverendo desceu os degraus do portal e
encaminhou-se para o cego.
― Quem é que me fala? ― perguntou este, alçando a cabeça.
― Frei Lourenço Lampreia, vosso amigo e servidor, honrado
mestre Afonso. Tão esquecida anda já minha voz em vossas orelhas, que me não
conheceis pela toada?
― Perdoai-me, mui devoto padre-prior ― atalhou o velho,
tenteando com os pés o chão para erguer-se, no momento em que Frei Lourenço
Lampreia chegava junto dele, seguido do seu confrade Frei Joane, procurador do
mosteiro. ― Perdoai-me! Foi-se o ver, vai-se o ouvir. Em distância, já não
acerto a distinguir as falas.
― Estai quedo; estai quedo, mestre Afonso ― disse Frei
Lourenço, segurando o cego pelo braço. ― O indigno prior do Mosteiro da Vitória
não consentirá que o mui sabedor arquitecto e imaginador Afonso Domingues, o
criador da oitava maravilha do Mundo, o que traçou este edifício, doado pelo
virtuoso de grandes virtudes rei D. João à nossa Ordem, se alevante para estar
em pé diante do pobre frade...
― Mas esse religioso ― interrompeu o cego ― é o mais abalizado
teólogo de Portugal, o amigo do mui excelente doutor João das Regras e do
grande Nun’Álvares, e privado e confessor de el-rei; Afonso Domingues é apenas
uma sombra de homem, um troço de capitel partido e abandonado no pó das
encruzilhadas, um velho tonto, de quem já ninguém faz caso. Se vossa caridade e
humildosa condição vos movem a doer-vos de mim e a lembrar-vos de que fui vivo,
não achareis nisso muitos de vossa igualha.
― De merencório humor estais hoje ― disse o prior, sorrindo.
― Não só eu vos amo e venero: el-rei me fala sempre de vós em suas cartas. Não
sois cavaleiro de sua casa? E a avultada tença que vos concedeu em paga da obra
que traçastes e dirigistes, enquanto Deus vos concedeu vista, não prova que não
foi ingrato?
― Cavaleiro!? ― bradou o velho. ― Com sangue comprei essa
honra! Comigo trago a escritura.
Aqui, mestre Afonso, puxando com a mão
trémula as atacas do gibão, abriu-o e mostrou duas largas cicatrizes no peito.
― Em Aljubarrota foi escrito o documento à ponta de lança por mão castelhana: a
essa mão devo meu foro, que não ao Mestre de Avis. Já lá vão quinze anos! Então
ainda estes olhos viam claro, e ainda para este braço a acha de armas era
brinco. El-rei não foi ingrato, dizeis vós, venerável prior, porque me concedeu
uma tença!? Que a guarde em seu tesouro; porque ainda às portas dos mosteiros e
dos castelos dos nobres se reparte pão por cegos e por aleijados.
Proferindo estas palavras, o velho não pôde continuar: a voz
tinha-lhe ficado presa na garganta, e dos olhos embaciados caíam-lhe pelas
faces encovadas duas lágrimas como punhos. A Frei Lourenço também se arrasaram
os olhos de água. Frei Joane, esse olhou fito para o cego durante algum tempo,
com o olhar vago de quem não o compreendia. Depois, a ideia da tardança de el-rei
e da tardança do auto, que, entrando pelas horas de cear e dormir, iria fazer
uma brecha horrorosa na disciplina monástica, veio despertá-lo como espinho
pungente. Começou a bufar e a bater o pé, semelhante ao corredor brioso do
Livro de Job e da Eneida. Entretanto, o arquitecto havia-se posto em pé: um
pensamento profundamente doloroso parecia reverberar-lhe pela fronte nobre e
turbada, e houve um momento de silêncio. Por fim, segurando com força a manga
do hábito de Frei Lourenço, disse-lhe:
― Sois letrado, reverendo padre: deveis ter visto algum
traslado da Divina Comédia do florentino Dante.
― Li já, e mais de uma vez ― respondeu o prior. ― É
obra-prima, daquelas a que os Gregos chamavam epos, id est, enarratio et
actio, segundo Aristóteles; e se não houvesse nessa escritura algumas ousadias
contra o papa...
― Pois sabei, reverendo padre ― prosseguiu o arquitecto,
atalhando o ímpeto erudito do prior –, que este mosteiro que se ergue diante de
nós era a minha Divina Comédia, o cântico da minha alma: concebi-o eu; viveu
comigo largos anos, em sonhos e em vigília: cada coluna, cada mainel, cada
fresta, cada arco, era uma página de canção imensa; mas canção que cumpria se
escrevesse em mármore, porque só o mármore era digno dela. Os milhares de
favores que tracei em meu desenho eram milhares de versos; e porque ceguei
arrancaram-me das mãos o livro, e nas páginas em branco mandaram escrever um
estrangeiro! Loucos! Se os olhos corporais estavam mortos, não o estavam os do
espírito. O estranho a quem deram meu cargo não me entendia, e ainda hoje estes
dedos descobriram nessa pedra que o meu alento não a bafejara. Que direito
tinha o Mestre de Avis para sulcar com um golpe do seu montante a face de um
arcanjo que eu criara? Que direito tinha para me espremer o coração debaixo dos
seus sapatos de ferro? Dava lho o ouro que tem despendido? O ouro!... Não! O
Mestre de Avis sabe que o ouro é vil; só é nobre e puro o génio do homem.
Enganaram-no: vassalos houve em Portugal que enganaram seu rei! Este edifício
era meu; porque o gerei; porque o alimentei com a substância da minha alma;
porque necessitava de me converter todo nestas pedras, pouco a pouco, e de
deixar, morrendo, o meu nome a sussurrar perpetuamente por essas colunas e por
baixo dessas arcarias. E roubaram me o filho da minha imaginação, dando me uma
tença!... Com uma tença paga se a glória e a imortalidade? Agradeço vos, senhor
rei, a mercê!... Sois em verdade generoso... mas o nome de mestre Ouguet
enredar se á no meu ou, talvez, sumirá este no brilho de sua fama mentida...
O cego tremia de todos os membros: a veemência com que
falara exaurira lhe as forças: os joelhos vergaram lhe, e assentou se outra vez
em cima do fuste. Os dois frades estavam em pé diante dele.
― Estais mui perturbado pela paixão, mestre Afonso ― disse
Frei Lourenço, depois de larga pausa –, por isso menoscabais mestre Ouguet, que
era, talvez, o único homem que aí havia capaz de vos substituir. Quanto a vós,
pensaram os do conselho de el rei que deviam propor lhe vos desse repouso e
honrado sustentamento para os cansados dias. Ninguém teve em mente ofender o
mais sabedor e experto arquitecto de Portugal, cuja memória será eterna e nunca
ofuscada.
― Obrigado ― atalhou o velho ― aos conselheiros de el rei
pelos bons desejos que em meu prol têm. São políticos, almas de lodo, que não
compreendem senão proveitos materiais. Dão me o repouso do corpo e assassinam
me o da alma! Acerca de mestre Ouguet, não serei eu quem negue suas boas manhas
e ciência de edificar: mas que ponha ele por obra suas traças, e deixem me a
mim dar vulto às minhas. E demais: para entender o pensamento do Mosteiro de
Santa Maria da Vitória, cumpre ser português; cumpre ter vivido com a revolução
que pôs no trono o Mestre de Avis; ter tumultuado com o povo defronte dos paços
da adúltera;
ter pelejado nos muros de Lisboa; ter vencido em Aljubarrota. Não é este
edifício obra de reis, ainda que por um rei me fosse encomendado seu desenho e edificação,
mas nacional, mas popular, mas da gente portuguesa, que disse: não seremos
servos do estrangeiro e que provou seu dito. Mestre Ouguet, escolar na
sociedade dos irmãos obreiros,
trabalhou nas sés de Inglaterra, de França e de Alemanha, e aí subiu ao grau de
mestre; mas a sua alma não é aquecida à luz do amor da pátria; nem, que o
fosse, é para ele pátria esta terra portuguesa. Por engenho e mãos de
portugueses devia ser concebido e executado, até seu final remate, o monumento
da glória dos nossos; e eis aí que ele chamou de longes terras oficiais
estranhos, e os naturais lá foram mandados adornar de primorosos lavores a
igreja de Guimarães. Sei que não seriam nem eles nem eu quem pusesse esse
remate; mas nós deixaríamos sucessores que conservassem puras as tradições da
arte. Perder se á tudo; e, porventura, tempo virá em que, nesta obra dos
séculos, não haja mãos vigorosas que prossigam os lavores que mãos cansadas não
puderam levar a cabo. Então o livro de pedra, o meu cântico de vitória, ficará
truncado. Mas Afonso Domingues tem uma pensão de el rei...
Em uma das casas que ficavam mais próximas, daquelas de que
fizemos menção no princípio deste capítulo, ergueu se a adufa de uma janela no
momento em que o cego proferia as últimas palavras, e uma velha, em cuja cabeça
alvejava uma toalha mui branca, gritou da janela:
― Mestre Afonso, quereis recolher-vos? Está pronta a ceia, e
começa a cair a orvalhada, que a tarde vai nevoenta.
― Vamos lá, vamos lá, Ana Margarida; vinde guiar-me.
E Ana Margarida, ama de mestre Afonso Domingues, saiu da
porta com a roca ainda na cinta, e o fuso espetado entre o linho e o ourelo que
o apertava. Chegando ao pé do velho, tocou- -lhe com o braço, em que ele se
firmou, tornando a erguer-se.
― Boas tardes, padre-prior ― disse a ama, fazendo sua
mesura, seguida de um lamber de dedos e de dois puxões nas barbas da estriga
quase fiada.
― Vá na graça do Senhor, filha ― respondeu Frei Lourenço, e acrescentou,
dirigindo-se ao cego:
― Meu irmão, Deus aceita só ao homem, em desconto da grande
dívida, a dor calada e sofrida. Resignai-vos na sua divina vontade.
― Na dele estou eu resignado há muito: na dos homens é que
nunca me resignarei.
E Ana Margarida, que tinha a ceia ainda no lume, foi puxando
o cego para a porta de casa.
― Ai, Afonso Domingues, Afonso Domingues! Vai-se-te após a
vista o siso. Aborrecida cousa é a velhice. Não vos parece, Frei Joane?
Isto dizia o prior, voltando-se para o outro frade, que
supunha estaria atrás dele; mas Frei Joane tinha desaparecido dali manso e
manso. Alongando os olhos ao redor de si, Frei Lourenço viu-o em pé sobre uma
pedra a alguma distância.
O prior ia a perguntar-lhe o que fazia ali, quando o
reverendo procurador saltou a correr, bradando:
― Ganhastes, padre-prior; ganhastes!... Eis el-rei que
chega.
E, com efeito, Frei Lourenço, volvendo os olhos para o cimo
de um outeiro, viu uma lustrosa companhia de cavaleiros, que, com grande
açodamento, descia para o vale do mosteiro.
Alexandre Herculano
(Amanhã II Capítulo/ Mestre Ouguet)
Poet'anarquista
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