«O Diabo e o Relojoeiro»
Conto de Daniel Defoe
144- «O DIABO E O RELOJOEIRO»
Vivia na paróquia de S. Bennet Fynk, perto da
Bolsa Real, uma viúva pobre e honesta, a qual, tendo perdido o marido, aceitou
inquilinos em sua casa, isto é, alugou algumas peças desta a fim de reduzir a
despesa do alugue. Entre outras, cedeu a água-furtada a um fabricante de
maquinarias de relógio, ou que fazia peças do género, e, segundo o hábito
da época, trabalhava para as relojoarias.
Certo dia, um homem e uma mulher subiram para falar com o relojoeiro sobre
alguma coisa relacionada a sua profissão. Chegando perto da escada, e vendo a
porta inteiramente aberta, conseguiram enxergar o pobre infeliz (o fazedor de
relógios ou de seus mecanismos) enforcado numa viga que saía da parede, um
pouco abaixo do tecto. Surpreendida com o espectáculo, a mulher parou
e gritou para o homem que a seguia pela escada para que corresse e cortasse a
corda do infeliz.
Naquele momento, de um canto do quarto, que da escada não era possível ver,
corre outro homem, trazendo na mão um banco dobradiço, como quem vinha com
muita pressa, e coloca-o no chão debaixo do pobre enforcado, e, apressado
sempre, sobe ao banco, tira do bolso uma faca e, segurando a corda com uma das
mãos, acena com a cabeça para o casal que se achava na porta, como para
dizer-lhes que parassem, que não subissem, e mostra-lhes a faca na outra mão,
como se estivesse a ponto de cortar a corda do enforcado.
Nisso a mulher estacou, mas o homem que estava no banco dobradiço continuava a
remexer na corda com a mão e com a faca, como procurando o nó, mas sem dar o
corte. Então a mulher gritou outra vez, e o homem que vinha atrás dela falou:
- Vamos subir – disse ele – supondo que havia algum obstáculo – e ajudar o
homem que está no banco.
Mas o homem que estava no banco fez-lhe de novo sinais para ficarem quietos e
não subirem, como a dizer:
- Faço isso num instante. Deu dois cortes
com a faca como se cortasse a corda e parou outra vez.
Entretanto, o pobre
continuava enforcado e, consequentemente, morrendo. Nisso a mulher pergunta:
- Que há? Por que não corta a corda duma vez?
E o homem que estava atrás dela, esgotada a paciência, empurrou-a para o lado e
disse-lhe:
- Deixe que resolvo isso!
E sobe correndo e invade o quarto.
Mas, quando ali chegou, vejam, o mísero lá estava enforcado, porem não se via
nenhum homem com faca, nem banco dobradiço, nem outra coisa qualquer. Tudo isso
não passara de espectro e ilusão, destinados, sem dúvida, a deixar perecer e
expirar o pobre infeliz que se tinha enforcado.
O homem ficou tão surpreso e aterrado que, não obstante a coragem de que dera
mostra, caiu no chão como morto. E a mulher viu-se na obrigação de cortar a
corda ao enforcado com uma tesoura, só o conseguindo com grande esforço.
Como não tenho motivo para duvidar da veracidade desta história, que soube por
pessoas em cuja honestidade posso confiar, penso que não nos será nada difícil
saber quem podia ser o homem do banco: era o Diabo, que lá se pusera a fim de
acabar o assassínio do homem, a quem, na sua condição de Diabo, havia tentado e
levado a ser o carrasco de si mesmo. O fato, aliás, corresponde tão bem a natureza
do Diabo e ao seu ofício, o de assassino, que nunca o pus em dúvida. Nem me
parece injustiça com o Diabo acusá-lo desse crime.
Daniel Defoe
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