«Fila do Pão»
O Cego, por Karl Hofer
156- «FILA DO PÃO»
Pouco antes da segunda fornada da tarde começa a formar-se
uma fila à porta da padaria, passa em frente do sapateiro, da tabacaria, do
mini mercado do Iuri, onde tudo é limpo e apetecível, as frutas dispostas numa
paleta de cores, os legumes borrifados, as mercearias organizadas em
prateleiras de inox; a fila segue corredor fora e, por vezes, quando a fornada
se atrasa, alonga-se até ao talho. Há outras padarias no centro comercial do
bairro onde cresci, mas só ali, naquela padaria, se forma uma fila à hora da
segunda fornada da tarde.
Hoje, a fornada tarda e, por isso, a fila vai longa. O
bairro envelheceu, está cheio de viúvos, enquanto esperam na bicha do pão, não
sentem a solidão. Um homem indiano, também velho, é dos primeiros da fila.
Magro, mas de uma magreza extrema que espanta, o seu corpo, de tão magro, tem a
qualidade rara da translucidez. Na cabeça redonda, crânio lustroso, não se vê
um único cabelo. As orelhas largas de abano desequilibram a fragilidade do
rosto. Usa um bigode branco. Está imóvel, olhar fixo num ponto, alheio ao
burburinho do corredor. Sempre que a fila avança, dá dois passos, depois,
deixa-se ficar, esperando, absorto, corpo curvado como um junco soprado por um
vento caprichoso. A aparência física, mas, sobretudo, a postura, um alheamento
genuíno, uma leve arrogância aristocrata, a de quem nasceu numa casta superior
e por isso dela pode abdicar, tornam a parecença inevitável: em que pensará o
gandhi do bairro onde cresci?
Aproximam-se dois miúdos. Chegam ruidosos, cabelo empastado
de gel, ar trocista, vestidos de gangas barrocas, cheias de brilhos e tachas. A
sua chegada provoca um frémito de desconforto. São ciganos e vivem nos blocos
de realojamento que a câmara construiu há pouco tempo. As famílias ciganas
quebraram a paz do bairro. Trouxeram ruído, alguma violência. Há uma guerra não
declarada entre os habitantes do bairro residencial e os que vivem nos blocos
de habitação social. É uma guerra silenciosa, mas, como em todas as guerras,
assenta num ódio que não conhece excepções. Odeiam-se todos os que estão do
outro lado: homens, mulheres, velhos, deficientes, crianças como estas que se
aproximam da fila do pão. Os dois rapazes observam os velhos com olhos de
gavião. O esquema é sempre o mesmo. Precisam de encontrar o mais frágil, aquele
que mais facilmente deixe entrar o medo, a vítima ideal que permita o pequeno
furto, tão pequeno e irrelevante,
que nem parece ser aquilo que é.
A sua escolha, hoje, não é difícil. Ó senhor,
compre-nos aí dez pães, vá lá! O velho indiano não lhes responde. Mantém o
olhar fixo. Parece não os ver. Os rapazes pedincham durante mais algum tempo. O
silêncio do velho irrita os rapazes. O monhé não diz nada, diz entre dentes o
que parece ser mais novo. Compra aí dez pães, ó velho!, a intimidação
passa a ser clara, a coação já não se disfarça, o preconceito assume-se.
Insistem no insulto e na ameaça. O velho mantém a sua calma. Rosto sério e
alheio. Parece estar num outro mundo. De onde lhe vem a calma? Por que não
treme, de raiva, o seu corpo tão frágil? Por que não lhes responde? Os miúdos
acabam por desistir. Envergonhados, o orgulho atingido, desaparecem no
corredor. Por breves instantes, tudo sossega no corredor da fila do pão. Iuri,
no seu mini mercado, corta uma melancia riscada em quartos. Na tabacaria, um
homem retoma a leitura dos jornais.
A fila está prestes a avançar quando, do sapateiro, sai uma
mulher que veste um salwar kameez de cor clara, mas indefinida. Cheira a
sabonete de sândalo e curcuma. Aproxima-se do velho gandhi e fala-lhe muito
alto, aos gritos para se fazer ouvir. Desculpa-se por o ter deixado tanto tempo
sozinho, estava muita gente no sapateiro, mas valera a pena, conseguira
arranjar uma dobradiça que servia na perfeição na bengala. O velho acena a
cabeça em sinal de assentimento. A mulher abre o saco. Tira uma bengala
dobrável de alumínio. O velho pega-lhe e, imediatamente, inicia movimentos
pendulares, de lá para cá, de cá para lá, reconhece o espaço, larga a
escuridão, os seus olhos estão na ponta de borracha da bengala. A mulher
senta-o num dos bancos do corredor e toma o seu lugar na fila do pão. Sentado,
translúcido, sereno, o velho não sente a guerra silenciosa que se passeia pelas
ruas do bairro. Não sente medo. Nem ódio. Não se deu conta dos rapazes ciganos.
Não os viu. Não os escutou. O velho gandhi vive em paz porque o mundo não lhe
chega.
Ana Cássia Rebelo
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