«Queixa de Defunto»
Conto de Lima Barreto
146- «QUEIXA DE DEFUNTO»
António da Conceição, natural desta cidade, residente que
foi em vida, a Boca do Mato, no Méier, onde acaba de morrer, por meios que não
posso tornar público, mandou-me a carta abaixo que é endereçada ao prefeito.
Ei-la:
Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Doutor Prefeito do Distrito Federal. Sou
um pobre homem que em vida nunca deu trabalho às autoridades públicas nem a
elas fez reclamação alguma. Nunca exerci ou pretendi exercer isso que se chama
os direitos sagrados de cidadão. Nasci, vivi e morri modestamente, julgando
sempre que o meu único dever era ser lustrador de móveis e admitir que os
outros os tivessem para eu lustrar e eu não.
Não fui republicano, não fui florianista, não fui custodista, não fui hermista,
não me meti em greves, nem em cousa alguma de reivindicações e revoltas; mas
morri na santa paz do Senhor quase sem pecados e sem agonia.
Toda a minha vida de privações e necessidades era guiada pela esperança de
gozar depois de minha morte um sossego, uma calma de vida que não sou capaz de
descrever, mas que pressenti pelo pensamento, graças à doutrinação das seções
católicas dos jornais.
Nunca fui ao espiritismo, nunca fui aos “bíblias”, nem a feiticeiros, e apesar
de ter tido um filho que penou dez anos nas mãos dos médicos, nunca procurei
macumbeiros nem médiuns.
Vivi uma vida santa e obedecendo às prédicas do Padre André do Santuário do
Sagrado Coração de Maria, em Todos os Santos, conquanto as não entendesse bem
por serem pronunciadas com toda eloquência em galego ou vasconço.
Segui-as, porém, com todo o rigor e humildade, e esperava gozar da mais dúlcida
paz depois de minha morte. Morri afinal um dia destes. Não descrevo as cerimónias
porque são muito conhecidas e os meus parentes e amigos deixaram-me
sinceramente porque eu não deixava dinheiro algum. E bom, meu caro Senhor
Doutor Prefeito, viver na pobreza, mas muito melhor é morrer nela. Não se levam
para a cova maldições dos parentes e amigos deserdados; só carregamos
lamentações e bênçãos daqueles a quem não pagamos mais a casa.
Foi o que aconteceu comigo e estava certo de ir direitinho para o Céu, quando,
por culpa do Senhor e da Repartição que o Senhor dirige, tive que ir para o
inferno penar alguns anos ainda.
Embora a pena seja leve, eu me amolei, por não ter contribuído para ela de
forma alguma. A culpa é da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro que não
cumpre os seus deveres, calçando convenientemente as ruas. Vamos ver por quê.
Tendo sido enterrado no cemitério de Inhaúma e vindo o meu enterro do Méier, o
coche e o acompanhamento tiveram que atravessar em toda a extensão a Rua José
Bonifácio, em Todos os Santos.
Esta rua foi calçada há perto de cinquenta anos a macadame e nunca mais foi o
seu calçamento substituído. Há caldeirões de todas as profundidades e larguras,
por ela afora. Dessa forma, um pobre defunto que vai dentro do caixão em cima
de um coche que por ela rola sofre o diabo. De uma feita um até, após um
trambolhão do carro mortuário, saltou do esquife, vivinho da silva, tendo
ressuscitado com o susto.
Comigo não aconteceu isso, mas o balanço violento do coche machucou-me muito e
cheguei diante de São Pedro cheio de arranhaduras pelo corpo. O bom do velho
santo interpelou-me logo:
— Que diabo é isto? Você está todo machucado! Tinham-me dito que você era
bem-comportado — como é então que você arranjou isso? Brigou depois de morto?
Expliquei-lhe, mas não me quis atender e mandou que me fosse purificar um pouco
no inferno.
Está aí como, meu caro Senhor Doutor Prefeito, ainda estou penando por sua
culpa, embora tenha tido vida a mais santa possível. Sou, etc., etc. Posso
garantir a fidelidade da cópia a aguardar com paciência as providências da
municipalidade.
Lima Barreto
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