«O Mundo Começa Aqui»
Conto de Maria Rosa Colaço
145- «O MUNDO COMEÇA AQUI»
A chuva separara a luz com grossos cordões que desciam das
nuvens e se prendiam à silhueta das pessoas, raras, que se encontravam. Mas,
depois da chuva, veio a pausa amena em que a Terra e o ar se harmonizaram. O
pai disse para a menina: Veste o casaco. Vamos passear.
Então, rua fora, com a mão na mão do pai, a menina caminhou em pequenos passos
saltitantes. O cachecol branco que levava era uma mancha de luz, um fragmento
da Via Láctea. Clara. Esvoaçante. Os caracóis louros uma auréola de alegria no
vento discreto e húmido da tarde.
Atravessaram ruas e casas, cruzaram-se com pessoas e animais, depois entraram
no campo onde a Primavera próxima já perturbava os aromas e fazia espreitar as
primeiras flores.
A menina ria, conversava muitas coisas, conversava sempre e ao pai, lá em cima,
tudo isso chegava como um som de chilreios, música de pássaros.
Era bom passear assim, no dia lavado, por entre árvores e gente e flores,
sentir as botas molhadas e este cheiro tão bom e inicial, de terra húmida a
pedir sementes. Era bom, levar pela mão esta criança curiosa, ávida de
descoberta, para quem tudo era uma festa prometida e inesgotável. Era bom,
pensava também a menina, caminhar com a mão deste homem-pai, alto como um
gigante. A mão era quentinha e macia; era forte e doce e o perfume discreto a
tabaco que dela se desprendia era um perfume de pai, único e para sempre. Tão
bom! E respirou fundo e encostou mais o rosto dourado àquela flor de cinco
pétalas fechadas onde se sentia protegida.
Andaram mais.
Andaram toda a tarde pelas pequenas veredas, pelos verdes caminhos onde as
gotas de chuva punham reflexos e frescura.
A certa altura, o pai parou para acender um cigarro e libertou a mão da
criança. À sua frente, ali mesmo junto aos pequenos pés, havia uma poçazinha de
água que a chuva deixara. Era um círculo mínimo, mas estava ali, à sua frente e
fechava-lhe o horizonte, interrompia-lhe a aventura.
Sem a mão do pai na sua mão, o obstáculo tornara-se intransponível.
Puxou-lhe várias vezes pelo casaco e, quase a medo, sussurrou, perplexa pela
imensidão daquele mar tão súbito:
«Ó pai, o mundo acaba aqui?»
Foi então que lá em cima os deuses se sorriram e enviaram para coroar esse
instante, um arco-íris com todas as cores da poesia. Que a menina ainda
conserva no olhar e já lá vão tantos anos.
Maria Rosa Colaço
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