«Sermão de Santo António aos Peixes», por Padre António Vieira.
Padre António Vieira
Sermão de Santo António aos Peixes
Pregado em São Luís do Maranhão, a 13 de Junho de 1654, três dias antes de se embarcar ocultamente para o Reino. Revela fina ironia, riqueza nas sugestões alegóricas e agudo senso de observação sobre os vícios e vaidades do Homem, comparando-o através de alegorias, aos peixes.
Critica a prepotência dos grandes que, como peixes, vivem do sacrifício de muitos pequenos, os quais "engolem" e "devoram". O alvo são os colonos do Maranhão, que no Brasil são grandes, mas em Portugal "acham outros maiores que os comam, também, a eles."
Censura os soberbos (=rocandores), os pregadores (=parasitas); os ambiciosos(=voadores); os hipócritas e traidores (= polvos).
"O polvo com aquele seu cabelo na cabeça, parece um monge; com aqueles seus ralos estendidos, parece uma estrela; com aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura, a mesma mansidão. E debaixo dessa aparência tão modesta ou dessa hipocrisia tão santa, testemunham constantemente (...) que o dito polvo é o maior traidor do mar."
É muito conhecido o exórdio deste sermão, que permite estabelecer a unidade e a circularidade do argumento, que volta sempre o ponto inicial, o conceito predicável: "Vós sois o sal da terra",Vos estis sal terrae. S. Mateus, V, l3.
Fonte: http://portuguesonline2.no.sapo.pt/sermaointegral.htm
«Sermão de Santo António aos Peixes»
Por Padre António Vieira
I Capítulo
163- «SERMÃO DE SANTO ANTÓNIO AOS PEIXES»
Vós, diz Cristo, Senhor nosso, falando com os pregadores,
sois o sal da terra: e chama-lhes sal da terra, porque quer que façam na terra
o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção; mas quando a terra se
vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal,
qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não
salga, ou porque a terra se não deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os
pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque a terra se não deixa
salgar e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes dão, a não querem
receber. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores dizem uma cousa e fazem
outra; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar
o que eles fazem, que fazer o que dizem. Ou é porque o sal não salga, e os
pregadores se pregam a si e não a Cristo; ou porque a terra se não deixa
salgar, e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem a seus apetites. Não é
tudo isto verdade? Ainda mal!
Suposto, pois, que ou o sal não salgue ou a terra se não
deixe salgar; que se há-de fazer a este sal e que se há-de fazer a esta terra?
O que se há-de fazer ao sal que não salga, Cristo o disse logo: Quod si
sal evanuerit, in quo salietur? Ad nihilum valet ultra, nisi ut mittatur foras
et conculcetur ab hominibus. «Se o sal perder a substância e a virtude, e o
pregador faltar à doutrina e ao exemplo, o que se lhe há-de fazer, é lançá-lo
fora como inútil para que seja pisado de todos.» Quem se atrevera a dizer tal cousa,
se o mesmo Cristo a não pronunciara? Assim como não há quem seja mais digno de
reverência e de ser posto sobre a cabeça que o pregador que ensina e faz o que
deve, assim é merecedor de todo o desprezo e de ser metido debaixo dos pés, o
que com a palavra ou com a vida prega o contrário.
Isto é o que se deve fazer ao sal que não salga. E à terra
que se não deixa salgar, que se lhe há-de fazer? Este ponto não resolveu
Cristo, Senhor nosso, no Evangelho; mas temos sobre ele a resolução do nosso
grande português Santo António, que hoje celebramos, e a mais galharda e
gloriosa resolução que nenhum santo tomou.
Pregava Santo António em Itália na cidade de Arimino, contra
os hereges, que nela eram muitos; e como erros de entendimento são dificultosos
de arrancar, não só não fazia fruto o santo, mas chegou o povo a se levantar
contra ele e faltou pouco para que lhe não tirassem a vida. Que faria neste
caso o ânimo generoso do grande António? Sacudiria o pó dos sapatos, como
Cristo aconselha em outro lugar? Mas António com os pés descalços não podia
fazer esta protestação; e uns pés a que se não pegou nada da terra não tinham
que sacudir. Que faria logo? Retirar-se-ia? Calar-se-ia? Dissimularia? Daria
tempo ao tempo? Isso ensinaria porventura a prudência ou a covardia humana; mas
o zelo da glória divina, que ardia naquele peito, não se rendeu a semelhantes
partidos. Pois que fez? Mudou somente o púlpito e o auditório, mas não desistiu
da doutrina. Deixa as praças, vai-se às praias; deixa a terra, vai-se ao mar, e
começa a dizer a altas vozes: Já que me não querem ouvir os homens, ouçam-me os
peixes. Oh maravilhas do Altíssimo! Oh poderes do que criou o mar e a terra!
Começam a ferver as ondas, começam a concorrer os peixes, os grandes, os
maiores, os pequenos, e postos todos por sua ordem com as cabeças de fora da
água, António pregava e eles ouviam.
Se a Igreja quer que preguemos de Santo António sobre o
Evangelho, dê-nos outro. Vos estis sal terrae: É muito bom texto para os
outros santos doutores; mas para Santo António vem-lhe muito curto. Os outros
santos doutores da Igreja foram sal da terra; Santo António foi sal da terra e
foi sal do mar. Este é o assunto que eu tinha para tomar hoje. Mas há muitos
dias que tenho metido no pensamento que, nas festas dos santos, é melhor pregar
como eles, que pregar deles. Quanto mais que o são da minha doutrina, qualquer
que ele seja tem tido nesta terra uma fortuna tão parecida à de Santo António
em Arimino, que é força segui-la em tudo. Muitas vezes vos tenho pregado nesta
igreja, e noutras, de manhã e de tarde, de dia e de noite, sempre com doutrina
muito clara, muito sólida, muito verdadeira, e a que mais necessária e
importante é a esta terra para emenda e reforma dos vícios que a corrompem. O
fruto que tenho colhido desta doutrina, e se a terra tem tomado o sal, ou se
tem tomado dele, vós o sabeis e eu por vós o sinto.
Isto suposto, quero hoje, à imitação de Santo António,
voltar-me da terra ao mar, e já que os homens se não aproveitam, pregar aos
peixes. O mar está tão perto que bem me ouvirão. Os demais podem deixar o
sermão, pois não é para eles. Maria, quer dizer, Domina maris: «Senhora do
mar»; e posto que o assunto seja tão desusado, espero que me não falte com a
costumada graça. Ave Maria.
Padre António Vieira
Amanhã, II capítulo/ Sermão de Santo António aos Peixes.
Poet'anarquista
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