«O Caixão do Molhado»
Conto por Pepetela
138- «O CAIXÃO DO MOLHADO»
SÔ BELARMINO MOREIRA nasceu na cidade do Porto, cidade que ele nunca nomeava
pela designação oficial, mas pela carinhosa de «Invicta». O feliz acontecimento
que o trouxe ao mundo aconteceu em 1918, num dia que culminava uma semana
inteira de chuva ininterrupta na Península Ibérica e arredores. Por isso o rio
ameaçava galgar todos os muros e obstáculos que ao longo da Ribeira as pessoas
tinham acumulado à força de braços e também dos músculos dos mulos, para evitar
a inundação. Trabalho insano e praticamente inútil, pois no momento em que a
mãe o empurrou para a vida ao ar livre, Belarmino escapou às mãos cansadas da
parteira e mergulhou pela primeira vez na água do Douro, que por essa altura já
subia a vinte centímetros no chão da casa. Por isso o seu primeiro nome não foi
Belarmino, como o conheceremos mais tarde, mas «Molhado», como lhe chamaram
sempre na cidade natal. O pai, vagamente adepto da Maçonaria e declaradamente
anticlerical, arranjou no facto pretexto para não permitir que fosse baptizado,
já lhe chegava de águas, coitadinho, que mal saiu do calorzinho aconchegante do
ventre materno logo mergulhou no Douro castanho e gelado.
Muito mais tarde falaria sempre a brincar do seu primeiro
nome de Molhado. Mas descrevia com supersticiosa reserva, já muito a sério, a
primeira visão que teve de uma outra cheia do Douro, aos quatro anos de idade.
A visão que para sempre o marcou foi a do cadáver de um homem a passar no rio
que corria, inchado, à frente da sua casa. Sempre associou as cheias do Douro a
esse instante de mudo terror. E registou, com notável precisão, o infortúnio
desmedido de se passar silenciosamente à frente de uma cidade, sem um caixão
que resguardasse a face morta e pálida dos curiosos olhares dos outros.
Quando o Molhado tinha cinco anos, o pai partiu para Angola,
tentar a sorte. E quatro depois, seguiu a família, ele, a mãe, e três irmãos.
Para trás ficou definitivamente o Douro e suas cheias. E quando lhe perguntavam
na escola de Luanda de onde tinha vindo ele respondia sempre da Invicta, pois
claro. Viveu no alto da Boavista, num sítio onde havia poucas casas e piores
estradas, sobretudo quando chovia. Deste sítio do outro lado do mundo também
via água ao sair de casa. Só que esta era do mar e contida numa calma e
belíssima baía azul com coqueiros e palmeiras à volta. Se apaixonou pela
diferença de cores e nunca mais quis mudar de sítio. E, por morar na Boavista
de Luanda, se tornou adepto ferrenho do clube de futebol Boavista, do mesmo
nome mas do Porto.
Casou, teve filhos, duas meninas, e um bom negócio de vendas
diversificadas, desde chouriço e roupa a materiais de construção. Ficou viúvo,
casou as filhas, começou a preparar a retirada dos negócios. Mas veio a
Independência e os genros pegaram nas famílias e abalaram para a África do Sul,
os olhos cheios de estranhos medos provocados por vagos remorsos. Ele nada
tinha a temer e gostava da vista da baía, por isso ficou. No entanto, nunca
mais pensou em reforma, pois deixara de ter quem lhe continuasse os negócios.
Só fechou a loja no dia da independência, não por medo mas porque era dia
demasiado importante para não ser comemorado de alguma maneira. Aliás, tudo na
cidade estava fechado, excepto os hospitais, que recebiam os feridos da guerra
que troava ameaçadoramente ao lado. Mas no dia seguinte à independência abriu
as portas da loja às oito horas, como durante trinta anos fizera.
Algum tempo depois da independência, atingiu os sessenta
anos de idade. Era altura de pensar na vida. Ou melhor, na morte e suas
inconveniências. Ouviu uma conversa na loja que o deixou a matutar. Se falava
da dificuldade cada vez maior de arranjar madeira para qualquer coisa que
fosse, sobretudo para as obras. Os clientes aliás se referiam a construções,
pois vinham procurar os materiais no «Canto do Belarmino». Era assunto muito
falado na época o facto de a indústria ter enorme dificuldade em providenciar
os caixões para os funerais. Se chegou mesmo a um ponto de só certos
privilegiados irem a enterrar dentro de caixões seus, pois a maior parte ia
embrulhada em lençóis e alguns em caixões alugados, que em seguida eram
desenterrados para servirem outros clientes. E foi isso que o preocupou mais.
Entrava numa idade em que um acidente do coração acontece a qualquer momento.
Ou se não for o coração é outra coisa qualquer. E se vivo já seria difícil
arranjar, muito mais complicado seria procurar caixão depois de morto. Porque o
aterrorizava a ideia de atravessar a cidade até ao cemitério de cara
descoberta, escancarada a privacidade de defunto, como aquele afogado do Douro
que para sempre o tinha marcado. Foi ali mesmo e naquele momento, ao ouvir as
lamúrias dos clientes, que resolveu providenciar imediatamente o seu próprio
caixão, para evitar futuras complicações.
Entrou em contacto com um conhecido de Cabinda que lhe enviou
a madeira suficiente. E desencantou pano preto num canto do armazém. Pregos não
foram problema, felizmente tinha havido uma importação recente e ainda lhe
sobravam muitos na loja. Com todo o material necessário, encomendou um modesto
caixão num marceneiro. Este lamentou que ele quisesse um tão simples e não um
mais sofisticado, como tinham tempo poderia arranjar uns ornamentos e até uns
baixos relevos que ficam sempre bem. Só Belarmino não queria luxos, nada disso,
homem, o simples é sempre o melhor, se não vivi com luxos não será na morte que
os vou levar. Pronto o caixão, carregou-o para casa. E ai se pôs o problema de
onde o guardar. Resolveu rapidamente a questão. O mais prático era colocá-lo em
baixo da cama. Se morresse na cama, seria mais fácil para quem se encarregasse
de o enfiar dentro da urna, estaria mesmo ali à mão. Se não morresse na cama,
de qualquer modo nela o deitariam para o velar. E portanto depois do velório
despachariam facilmente o assunto, com o caixão prontinho para ser usado.
Durante duas noites, é preciso reconhecer, teve dificuldades
em adormecer, sabendo o caixão em baixo dele. Mas depois se habituou à ideia e
até o esqueceu. Quem não podia esquecer era D. Maria, a empregada que lhe
limpava o quarto e que de vez em quando tinha de varrer em baixo da cama, para
isso sendo obrigada a afastar o caixão. Supersticiosa como todos os vizinhos do
bairro Sambizanga, se benzia sempre que tinha de fazer a operação para ela
considerada macabra. E nunca ganhou hábito. Muitas vezes comentava com os
familiares em casa, o raio do meu patrão não regula bem, essa mania de dormir
em cima do caixão é de maluco. Provocava sempre discussão, pois o marido
defendia a ideia de Só Belarmino, esse branco tem masé muito juízo, assim não
dá trabalho a ninguém quando bater as botas. E vamos aproveitar depois o caixão
para outros óbitos. O que provocava a revolta da esposa, isso é que eu não vou
deixar, antes de enterrar vou partir o caixão dele, assim ninguém que lhe pode
mais usar, coitado do meu patrão, lhe tiram a cama e lhe atiram no buraco só à
toa para aproveitarem o caixão?, não vou deixar, não, ele tem essa ideia maluca
mas é bom branco. A cunhada Deolinda defendia o irmão, aproveitamos sim o
caixão, pelo menos a madeira que está cara, enquanto o filho mais velho apoiava
a mãe, não se faz isso a Só Belarmino, ele sempre nos ajuda quando pode e a
discussão generalizava naquela família do Sambizanga, conhecido centro de
conspirações e murmúrios.
Os anos passaram e acabou tudo por entrar no cinzento dos hábitos.
D. Maria ainda resmungava com essa ideia maluca quando limpava em baixo da
cama, mas já nem comentava em casa. E só Belarmino acabou por esquecer mesmo o
caixão, que ele nunca via, pois também já nem o penico usava, último pretexto
que poderia levá-lo a martirizar a coluna para espreitar o sítio e deparar com
o objecto.
Na vizinhança morreu entretanto o Armindo e tempos depois a
viúva Mariana aligeirou o luto. Amigos antigos, só Belarmino apoiou muito a
família do falecido, quer no funeral e correspondente komba, quer no que se
seguiu. E um dia olhou para Mariana a entrar na sua loja e a viu não como a
esposa de Armindo ou como a viúva recente de Armindo. A viu apenas como a
mulher que era, uma senhora mulata de meia idade, farta de carnes e com um sorriso
aberto, se queixando muitas vezes de dores nos peitos generosos. E ele pela
primeira vez pensou com malícia que a dor no peito não era devida a qualquer
doença mas sim a que os seios ficavam demasiado apertados nas blusas e soutiens
que ela era forçada a usar e que os peitos deviam constituir um verdadeiro
espectáculo quando se soltavam triunfantes de tantos espartilhos. A garganta do
portuense até ficou seca e não atinou com a prateleira onde tinha o pano que
ela desejava comprar.
Aquela secura na garganta foi coisa que não mais perdeu
quando lembrava Mariana. E já perto dos setenta começou a fazer contas à vida.
Sobretudo a achar que a solidão era o pior dos males e que nenhum homem tem o
direito de se comprazer nela. O problema era como fazer para realizar o desejo
tão cuidadosamente escondido. Um homem de setenta anos não faz a corte a uma
viúva como um miúdo o faz a uma colega de escola. E como será afinal? Tinha
muitos amigos ali no bairro, mas a vergonha era demais para abrir o coração e
apontar as dúvidas a alguém, pedindo conselho. Nem nas noites de muitos copos e
jogos de cartas, quando o último amigo ficava para beberem juntos a : cerveja
da porta, hora própria para todas as confidências.
O que tinha de suceder acabou por acontecer da maneira mais
natural. Mariana a entrar na loja e a brincar com ele, dizendo que estava cada
vez mais jovem, mais rijo. E ele a replicar que ainda estava rijo, sim, mas já
não como nos tempos passados em que parecia uma goiabeira, nem tinha muita
razão para resistir ao tempo, pois se sentia cada vez mais sozinho, ao que ela
respondeu isso é que está errado, o compadre tem de arranjar uma companhia,
mulheres é o que não falta nesta terra despovoada de homens pela guerra e ele
dizendo que também não era assim, difícil seria encontrar alguém que quisesse
um velho caquéctico, mas caquéctico coisa nenhuma, compadre, está aí ainda para
muitas curvas, o que era apenas bondade dela e na brincadeira, pois se ele lhe
propusesse agora a sério que juntasse os bancos dela às cadeiras dele, aí é que
a porca torcia o rabo e lhe dava uma valente berrida que ele até ia parar ao
porto de Luanda, mas não deu berrida nenhuma, sorriu antes com os dentes todos
e o farto peito inchou que parecia ia explodir, mas está a falar a sério, compadre,
isso é mesmo uma proposta, que nunca tinha falado tão a sério, há muito tinha
pensado nisso porém não arranjava coragem de lho dizer, provocando nela um
imediato movimento de pura alegria. Assim foi dito, feita a proposta e
imediatamente aceite, sem falsos pudores ou aiués que ainda tenho de pensar.
Como eram gente de muita consideração e respeitadores dos bons costumes,
decidiram no entanto que só juntariam os trapos a sério depois de casados.
Primeiro tinham de avisar as respectivas famílias, as quais não deviam se
importar muito aliás, sendo eles viúvos e com idade suficiente para decidirem
sozinhos sobre como queimar os poucos anos de vida que lhes restavam.
O casamento foi preparado com todo o cuidado. Por essa
altura já a Boavista estava cheia de casas e de barracos, juntando muitos
refugiados de guerra e outra população expulsa das pequenas cidades. Só
Belarmino era muito conhecido e D. Mariana também, moradores antigos da zona,
de muito antes de ali aparecer um mercado mundialmente conhecido chamado Roque
Santeiro, considerado, com razão ou sem ela, o maior de África a céu aberto.
Isto para dizer que duas figuras destas não podiam casar quase
clandestinamente, sem uma festa que juntasse centenas de pessoas comendo e
bebendo do melhor, mesmo com todas as carências que a cidade vivia. Por isso os
preparativos demoraram mais que o desejado. Fosse da excitação pelo dia se
aproximando, fosse do muito trabalho que teve nos aviamentos, o certo é que
Mariana se queixava todos os dias de forte dor no peito inchado. E só
Belarmino, passada a timidez inicial, lhe segredava ao ouvido, vais ver que
essas dores passam logo na noite de núpcias, vou desenterrar sabedorias antigas
e quase esquecidas. E mais malandramente ainda, para a fazer ruborizar,
finalizava, esses peitos doem porque estão a pedir para serem chupados, o que
não acontece há muito tempo. Ai filho, que ordinário, se desfazia ela toda em
melados requebros e não menos malandros olhares de promessas.
Ficou célebre na história da Boavista o casamento de Belarmino, alto e seco, de
cor branca mas enferrujada pelo muito sol apanhado na pele, com a esplendorosa
Mariana, mulata alegre e prazenteira que gostava de andar descalça na rua. Se
comeu e bebeu o dia inteiro e toda a noite, num terreiro preparado nas traseiras
da loja. E os noivos fugiram a meio da noite para casa dele, onde passariam a
residir, ficando a casa dela para os filhos já casados e sempre com falta de
espaço, pois não paravam de provocar barrigas a inchar.
Com a sua gentileza habitual, Belarmino deixou o quarto para
a noiva se preparar e deitar, ficando ele na varanda a fumar o último cigarro e
ouvindo os rumores da festa que acontecia ali perto. Se preparava para entrar
no quarto e enfrentar os deveres da noite de núpcias quando um grito lancinante
feriu a noite. Correu para saber o que sucedia e encontrou a noiva deitada no
chão do quarto, um braço por cima do caixão que aparecia debaixo da cama.
Aparentemente, ela deu com a existência da coisa e puxou um pouco para fora
para saber de que se tratava. O susto pela descoberta macabra acabou com o seu
coração enfraquecido. Quando Belarmino chegou até ela, já a vida se tinha
irremediavelmente esfumado pelos olhos abertos.
Mariana foi a enterrar no caixão que o desconsolado marido encomendara dez anos antes para si próprio.
Vale a pena acrescentar que, depois de enterrar duas
esposas, e uma delas com menos de um dia de casamento, só Belarmino ultrapassou
definitivamente o trauma de criança e disse para si próprio, que se lixe se
passar pela cidade de cara descoberta mas outro caixão é que não arranjo, pois
tanta previdência pode não ser prudência.
Pepetela
Pepetela
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