«Serão»
Família Adolfo Pinto, por Almeida Júnior
160- «SERÃO»
A noite tinha para nós o atractivo das histórias. Depois da ceia, mamãe
arrumava tudo e lavava a cara a Lela e Nanduca. Já não havia o receio de
sairmos para a cabritagem da rua. Àquela hora tolhia-nos o medo do escuro… Tudo
arrumado e rezadas as orações, mamãe e mamãe velha iam sentar-se na salinha,
onde já estávamos, acomodados em bancos. A casa enchia-se de meninos. A nossa
imaginação vivia apaixonadamente no mundo variado que as histórias criavam. Acaçapado
ao pé de mamãe velha, o Baluca também fazia parte do serão, de
orelhas caídas e cabeça pensativa, como se estivesse recordando as roncações da
sua mocidade com as cadelinhas levianas que lhe davam trela.
Grande contadeira de histórias era Nhá Rosa Calita, velha pretona a quem os
rapazes trocistas chamavam Camões, por lhe faltar um olho em virtude de
pau-de-finado mal curado. E que lábia que ela tinha! Era um gosto ouvir-lhe
referir aqueles casos todos, contos de meninos presos, a engordar, dentro de caixas
grandes, por velhas feiticeiras, pastorinhos que casavam com a filha do rei,
rapazotinhos sabidos que tinham enganado Aquele Homem – pelo sinal da Santa
Cruz – e as demoniarias das feiticeiras que iam ao Esponjeiro tomar ordens do
seu chefe, um diabo trocista, de cara descarada, e depois saíam, transformadas
em bichos, a agoirentar a vida da criatura.
História, história!
Fartura do Céu, ámen!
― Era uma vez uma princesa que andava a correr mundo à procura de Passo-Amor,
seu noivo, mas para o alcançar tinha de furar a sola a sete sapatos de ferro:
Acorda, Passo-Amor,
há mil léguas em procura de ti…
Chegou a casa da mãe do vento, e esta escondeu-a dentro de
um cancarã. Entrou o filho, muito malcriado, com grande barulho, catã, catã, e
disse:
― Aqui cheira-me a sangue real…
Nós todos queríamos mais e mais histórias. A ouvir Nhá Rosa
Calita o sono fugia-nos totalmente…
― Certa ocasião havia grande fome na terra. Desde dois anos o mês de Outubro
não dera pinga de água para refrescar a planta, já amorrinhada do léu-léu
escasso de Setembro. Um homem de Fajã de Baixo vivia na sua casinha com duas
filhas, já raparigas, na vida castigada da pobreza. Vocês sabem, pobre é como
cama de chão, todos lhe passam por cima. Um dia, assim que os galos deram a última
pousa (tinham dormido sem cear), saiu com as filhas a furar a vida onde Deus
fosse servido de mostrar a Sua misericórdia. Andou, andou, passou a Assomada do
Mancebo, e ali em direitura de Fragatinha encontrou grande estendal de batata
conteira num fundo de quebrada. Encheram os balaios, mas o homem, com a voz
cheia de respeito, recomendou às filhas:
― Oh, minhas filhas, vocês não dêem a ninguém conta desta
senhora comida!
E seguiam os pormenores da história, em que a humildade e a
modéstia eram premiadas com um saco de dinheiro e a cobiça arrogante era
castigada com um açoite de pau de tamarindo.
Mamãe velha dormitava na cadeira de balanço, pois, além de
ser já pessoa antiga e ter o corpo queixoso, levantava-se logo assim que os
galos davam a última pousa, no alvor nascente da antemanhã. Mamãe, essa,
entretinha-se na sua renda de duas agulhas, cuja perfeição de acabado era muito
gabada pelas menininhas luxentas da vila. Mas nós, os garotos, ficávamos
despertos, de sentido cegueirado nas histórias…
Baltasar Lopes
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