O conto de hoje é uma homenagem de um amigo a outro amigo. Tudo se passou numa noite invernosa dos anos cinquenta do século passado.
Em outro tempo, dois amigos desciam o Outeiro das Nozes...
Poet'anarquista
«Seduzindo a Morte», por Orson W. Calabrese
João Paulo Galhardas
Desenhos e Pinturas
141- «SEDUZINDO A MORTE»
Quando um homem se põe a pensar – tal como dizia o poeta –
vêem-lhe à lembrança as mais recônditas recordações. Pessoas e imagens que já
pensávamos pertencer ao mundo da ficção, quiçá da imaginação dos outros, tal o
retrato que delas nos foi chegando. Quando pessoas e imagens que já não
dominamos porque a bruma dos anos, dos caminhos e das lendas as enevoaram,
surgem vivas e reais mesmo ao nosso lado, é inevitável que delas e com elas
falemos. É verdade, há dias assim!
Este escrito pretende ser uma homenagem ao
homem que talvez, talvez não, com toda a certeza, mais influência exerceu sobre
quem escreve estas linhas: O João Fitas. No entanto, para que o texto se torne
compreensível, temos que recuar muitos anos e voltar ao fim da década de
cinquenta do século passado quando, numa noite de invernia, já a hora ia
adiantada, aqueles dois desciam o Outeiro das Nozes, bem encasacados, pois o
frio era intenso, embora eles disso não se apercebessem, tal o entusiasmo que
punham na conversa.
Em outro tempo...
João Fitas e João Regatão
Falavam em tom muito baixo porque, como todos
sabemos, no Alandroal, as paredes sempre tiveram ouvidos, e o que era para dois
não era para três. O João era um dos dois que desciam a ladeira. E divagava por
um dos seus temas favoritos: A morte! Esse, era um assunto que o atraía e ao
qual voltava com muita frequência. O mistério da morte fazia com que, da sua
cabeça, saíssem as mais incríveis teorias. Nessa noite, dizia: «A morte, com
toda a sabedoria da eternidade, pois ela é a única que não morre, muitas vezes
apresenta-se de forma muito insinuante, muito atractiva, muitas vezes na figura
de mulher bonita. Nessas alturas é preciso resistir-lhe, fazer-lhe frente,
seduzi-la, de maneira a retardar o momento da partida.»
«Seduzindo a Morte»
JPGalhardas
Conversa com pano para
mangas, conforme estão vendo. E acabou já alta madrugada, inconcludente, como
não podia deixar de ser. Houve, porém, uma palavra que sempre recordarei:
“seduzi-la“ . Seduzir a morte quando ela se apresentasse como mulher bonita.
Ora o João era um sedutor. Em todos os aspectos. Desde logo, fisicamente: Alto,
bonito, olhos claros, cabelos a raiar o louro nórdico, charmoso. E quando
falava, raramente as mulheres lhe resistiam.
A doença do João foi terrível. Uma doença que rapidamente levava de viagem quem
dela padecia. Mas também sei que o João deu muita luta. E sei isso porque,
nessa fase, o acompanhei de muito perto. Visitava-o muito e até nos
correspondíamos. Embora nessa correspondência o tema principal fosse a
política, por vezes, a doença dele também vinha à baila. Sei que ele utilizou,
na luta contra a morte, todos os seus recursos. Depois da sua partida, talvez
para acalmar a dor da perda, sempre gostei de pensar, levando em conta a
conversa que acima contei, que ele tinha seduzido a tal mulher bonita que o
vinha buscar. E mesmo configurando a morte, porque resistiria essa mulher ao
charme do João? Seria a primeira! Estou até convencido que, depois de se
enamorar dele, ela o levou para não o perder.
«BYE BYE LIFE»
ALL THAT JAZZ
É aqui que entra o cinema. Também para desanuviar a densidade deste escrito. E,
também ainda, para eu me sentir mais aliviado por escrever estas palavras. O
filme “All That Jazz “ (não me lembro do título em português), em que a
morte é personificada por uma magnífica Jessica Lange, é a cópia quase fiel das
teorias do João a respeito da vida e da morte.
E isso prova que, por esse mundo fora, o João não era o único a compartilhar
essas inquietações. Termino com a sensação de ter dito mais do que devia e
menos do que queria.
Orson W. Calabrese
(Um outro conto: Soneto para dois amigos)
O PRINCÍPIO DO FIM
Era um dia incerto, como outro qualquer
Eu já havia morrido muito tempo antes,
Ainda no ventre fecundo de uma mulher
Encontrava a morte em breves instantes.
A partir desse momento a morte seguia
Sempre a meu lado, marcando as horas,
Todos os passos que eu dava ela sentia
O tempo passar sem grandes demoras.
E assim, certo dia abortou neste mundo
Mais outra vida com o destino marcado,
A morte às arrecuas em ventre fecundo;
Para onde quer que vá, vai a meu lado
Não me deixa em paz nem um segundo,
Desde o princípio me traz bem guardado.
Solrac Agib
Sem comentários:
Enviar um comentário