«À Imagem e Semelhança»
Conto por Mario Benedetti
56- «À IMAGEM E SEMELHANÇA»
EIa era a última formiga da caravana, e não pôde seguir a
mesma rota das suas colegas. Um torrãozinho de açúcar tinha escorregado do
alto, quebrando-se em vários pedacinhos. Era um deles que lhe interceptava o
passo. Por um momento a formiga ficou imóvel em cima do papel cor creme. Em
seguida, seus pezinhos dianteiros sondaram o cubinho. Retrocedeu, depois parou.
Pegando seus pés traseiros quase como ponto fixo de apoio, deu uma volta em
redor de si mesma no sentido dos ponteiros do relógio. Só então se aproximou de
novo. As patinhas dianteiras se esticaram, numa primeira tentativa de erguer o
açúcar, mas fracassaram. Porém, o rápido movimento fez com que o torrão ficasse
mais bem posicionado para a operação de carga. Dessa vez a formiga investiu
lateralmente no seu objetivo, ergueu o cubinho e segurou-o acima de sua
cabeça. Por um instante pareceu vacilar, logo reiniciou a viagem, com um passo
mais lento que o que a trouxera. Suas colegas já estavam longe, fora do papel,
perto do rodapé. A formiga se deteve, exatamente no ponto em que a superfície
sobre a qual andava mudava de cor. Os seis pezinhos pisaram um N maiúsculo e
escuro. Depois de uma momentânea parada, acabou por atravessá-lo. Agora a
superfície era outra vez clara. De repente o torrão escorregou sobre o papel,
quebrando-se em dois. A formiga fez então uma ronda que incluiu uma parada para
inspecionar ambas as porções, e escolheu a maior. Carregou-a e avançou. No
caminho, livre até esse instante, apareceu um toco esmagado. Contornou-o
lentamente e, quando reapareceu do outro lado do toco, a superfície havia-se
tornado novamente escura, porque nesse instante o trajeto da formiga ocupava o
lugar de um A. Houve uma leve corrente de ar, como se alguém tivesse soprado.
Formiga e carga rolaram. Agora o grão se desintegrou por completo. A formiga
caiu sobre suas patas e empreendeu uma louca corrida em círculos. Em seguida
pareceu tranquilizar-se. Caminhou em direção a um dos grãos de açúcar que
anteriormente tinha formado parte do meio torrão, mas não o carregou.
Quando
reiniciou sua marcha não havia perdido o caminho. Passou rapidamente sobre um D
escuro e, ao reingressar na zona clara, outro obstáculo a deteve. Era um
pedacinho de alguma coisa, um pauzinho, por acaso três vezes maior do que ela
mesma. Retrocedeu, avançou, tateou o pauzinho, ficou imóvel durante alguns
segundos. Depois recomeçou a tarefa da carga. Por duas vezes o pauzinho
escorregou, mas afinal ficou bem firme, como um tipo de haste inclinada. Ao
passar sobre a área do segundo A escuro, o andar da formiga era quase triunfal.
No entanto, não havia ainda avançado dois centímetros pela superfície clara do
papel, quando alguma coisa ou alguém moveu aquela folha e a formiga rodou, mais ou menos curvada sobre si mesma. Só conseguiu reincorporar-se quando
alcançou a madeira do assoalho, a cinco centímetros, estava o pauzinho. A
formiga avançou até ele, desta vez com parcimónia, como medindo cada sêxtuplo
passo. Mesmo assim, chegou até seu objetivo, mas, quando esticava as patas
dianteiras, novamente correu aquele ar e o pauzinho rodou até deter-se dez
centímetros mais longe, caindo numa das fendas que separavam as tábuas do
assoalho. Um dos extremos, porém, emergia para cima. Para a formiga, tal
posição representou de certa maneira uma facilidade, já que permitiu fazer uma
volta para tentar a operação de um ângulo mais favorável. Meio minuto depois, a
tarefa estava cumprida. A carga, outra vez alçada, estava agora numa posição
mais próxima da estrita horizontalidade. A formiga reiniciou a marcha, sem desviar-se
jamais do seu caminho em direção ao rodapé.
As outras formigas, com seus
respectivos suprimentos, haviam desaparecido por algum invisível buraco. Sobre
a madeira, a formiga avançava mais lentamente do que sobre o papel. Um nó
bastante rugoso da tábua significou uma demora de mais um minuto. O pauzinho
esteve a ponto de cair, mas um certo vaivém do corpo da formiga segurou sua
estabilidade. Dois centímetros mais e um golpe ressoou. Um golpe aparentemente
dado sobre o assoalho. Exatamente como as outras, essa tábua vibrou e a formiga
deu um pulinho involuntário, durante o qual perdeu sua carga. O pauzinho ficou
atravessado na tábua contígua. O trabalho seguinte foi atravessar a fenda, que
já nesse ponto era bastante profunda. A formiga aproximou-se da beira, fez um
leve avanço em sentido de alerta, mas, mesmo assim, precipitou-se naquele
abismo de centímetro e meio. Demorou vários segundos para refazer-se, escalar o
lado oposto da fenda e reaparecer na superfície da tábua seguinte. Ali estava o
pauzinho. A formiga permaneceu um momentinho junto dele, sem outro movimento a
não ser um intermitente tremor das patas dianteiras. Depois levou a termo sua
quinta operação de carga. O pauzinho ficou horizontal, porém um pouco oblíquo
em relação ao corpo da formiga. Ela fez um movimento brusco e dessa forma a
carga ficou mais bem acomodada. A meio metro estava o rodapé. A formiga avançou na direção anterior, que, nesse espaço, por
coincidência, se correspondia com a fenda. Agora o passo era rápido, e o
pauzinho não parecia correr nenhum risco de cair. A dois centímetros de sua
meta, a formiga se deteve, novamente alerta.
Então, do alto, apareceu um polegar, um grosso dedo humano,
e conscientemente esmagou carga e formiga.
e conscientemente esmagou carga e formiga.
Mario Benedetti
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