«Na Esteira do Parto»
Conto de Mia Couto
75- «NA ESTEIRA DO PARTO»
O casal se chegou, em dupla obscuridade. Os dois pediam
licença à penumbra. A mulher vinha mais dobrada que gruta na montanha. Estava
grávida, quase em fim do estado. Chegados à claridade se reconheceu serem
Diamantinho, o mais vizinho dos residentes, e sua redonda esposa, Tudinha Rosa,
retorcida em dores e esgares. A pobre zululuava, em completas tonturas.
Diamantinho, porém, parecia alheio à mulher.
O casal comparecia em casa de Ananias e Maria Cascatinha, os
afáveis vizinhos. As duas donas ficaram na varanda, já uma esteira se
estendendo para o que desse e saísse. Maria Cascatinha sorriu, timiúda: aquela
era a sua mais pessoal esteira. Não era um simples objeto de assentar. Sobre
aquela esteira haviam sido concebidos, de namoro e gemidos, seus todos filhos.
Diamantinho foi entrando, dando-se poiso e posição, mais
instalado que convidado. Sentou-se, convocou os pedidos de uma bebida,
serviu-se dos confortos. Ananias, o anfitrião, ainda lhe reparou a atenção: não
ia ajudar a sua derreada esposa? O outro apenas sorria, saboreando prazeres
desta e de outras vidas. Ananias insistiu:
— Você, Diamantinho, não divide o sofrimento familiar?
— Tem razão, Ananias, eu só penso da minha pança para cá. Na
realmente, não valho as penas. Também já sou assim desde a barriga do meu pai.
Sobre a mulher, Diamantinho nem esboçou menção. Tudinha Rosa
permanecia fora, em posição de estar deitada, descontorcida. Rejeitara,
contudo, a esteira. Dar parto devia ser sobre a terra, a mãe das mães. Assim é
o mandamento da tradição. Maria Cascatinha se agradecia por facto de a esteira
ser dispensada. E enrolou-a num cuidadoso canto. Tudinha assentava agora sobre
o mundo. Mas a carícia da terra de pouco lhe aliviava. A mulher seguia em dor:
os olhos já ímpares, as tripas já triplas.
Na sala, o marido servia-se da bebida oferecida, vagueando
os olhos em aplicações de preguiça. E continuava a fiar conversa, sempre na
mais concisa inexatidão:
— Me sinto ferrujado, Ananias. Não é que eu seja mais velho
que você. Eu nasci foi antes...
Ananias se enervava com a atitude do visitante, mais
displicientífico que pangolim. Bem se sabe: partos são exclusivo assunto de
mulheres. Diamantinho, no entanto, parecia por de mais alheado. E tanto mais
quanto, lá fora, as coisas agora se complicavam. Tudinha desprogredia de nesga
em vesga. Trocava tudo, até as rezas: o padre-maria e a ave-nossa. Em aflição,
Ananias propôs ações e providências. Não seria melhor levar a grávida até à
vila? O candidato a pai, sereno como rio em planície, não apresentava nenhum
cuidado. Ordenou ao outro que sentasse, quieto. E estendia o copo a solicitar
mais enchimentos. Tudo sem perplexidades.
A mulher, sua indiscutível esposa, se desdobrava em
lancinantes gritos. Sobrinhas diversas se juntavam em roda, debruçadas sobre a
sofrimentada mãe. O nervoso círculo das mulheres se podia ver pela janela. Até
que Ananias foi chamado, em convocação de auxílio. Ananias sugeriu ao visitante
que os dois acudissem mas o outro ripostou que estava a acabar uma bebida ainda
mal começada. Que depois iria, já em tempo e disposição de proceder
devidamente. Por enquanto, ele descascava o tempo, impassível como tronco de
embondeiro.
Ananias rompeu a tradição, juntando-se ao parto que se
demorava e às parteiras que se enervavam. Dúvidas gerais se começavam a espalhar.
Todos, afinal, sabem: parto que se prolonga significa infidelidade da mulher.
Para salvar a situação, a grávida deve admitir o pecado, divulgar o nome do
autêntico pai da criança. Caso o contrário, então, o bebé fica retido no
ventre, sem mês nem signo.
Então, no meio de gritos, suspiros e transpiros, Tudinha
Rosa confessou ter trocado amores com Ananias, o próprio e presente anfitrião.
Maria Cascatinha ficou em estado de nem-estar: seu marido, pai de alheio
rebento? Porém, continuou seu trabalho de parteira, inalterável. Só os olhos
dela se descomportavam, derramados. Sem palavra, ela findou a obra de
desbarrigar a sua súbita adversária. No princípio, a confissão de Tudinha fora
um simples murmúrio, não se ouvindo para além do recinto. Nos últimos esforços,
porém, a grávida foi alardeando a consumada traição:
— Foi Ananias, foi ele!
Dentro, tudo se ouviu. Foi como se mundo abrisse rochas e
rachas. Diamantinho, nesse repente, mudou da alvorada para o poente.
Saiu para a varanda com cara de marido, em ares de pareceres
e pancadarias. Numa palavra: chocado e chocalhado. Descia de sujeito para
fulano, de fulano para tipo. Nunca antes se vira tal metamorfase. Ele se
enraivecia a ponto de lâminas e pólvoras. E gritou ameaças e impropérios:
haveria Ananias de beijar os pés que ele pisasse. Entre os dois homens se
procederam a estrondosas porradarias.
Enquanto socos e insultos se trocavam, o novo menino foi
emigrando para a luz. Diamantinho e Ananias nem deram contas do nascimento.
Tudinha e o recém-nascido foram levados para um interior quarto, em resguardo.
Ananias, aviado de uns tantos sopapos, se recolheu no mesmo aposento da
respectiva grávida. Ali ficou o tempo de muitas vidas. Na sala, Diamantinho
soprou raivas, invocando feitiços e péssimos-olhados contra o dito Ananias.
Depois, se derreou, infeliz como a casca sem a banana.
Maria Cascatinha, surgida de igual tristeza, veio a amparar
o traído Diamantinho. Lhe assentou o braço sobre o ombro e lhe disse que lhe
acompanhava, rumo a casa. Diz-se que Maria Cascatinha nunca mais voltou. Nem
para buscar a sagrada esteira.
Mia Couto
Sem comentários:
Enviar um comentário