«Cinzas dos Tempos»
Esboço, por Khalil Gibran
58- «CINZAS DOS TEMPOS»
Capítulo II (conclusão)
Primavera do Ano 1890
O dia estava findo, a Natureza fazia os seus muitos
preparativos para o sono, e o sol recolhia os seus raios dourados das planícies
de Baalbek. Ali El Hussein trazia o seu rebanho de volta ao redil, no meio
das ruínas dos templos. Sentava-se ele perto das antigas colunas erguidas em
lembrança dos inúmeros soldados tombados no campo de batalha.
As ovelhas faziam um círculo ao redor, encantadas com a
música de sua flauta. Veio a meia-noite e o céu espalhou as sementes do dia
seguinte nos profundos sulcos da escuridão. Os olhos de Ali cansavam-se das
sombras de sua vigília, e a sua mente exauria-se na procissão de fantasmas,
marchando em terrível silêncio ao meio de paredes demolidas. Descansou em seu
proprio braço, e os seus cinco sentidos o envolveram com a ponta extrema de seu
véu em pregas, como uma nuvem delicada, tocando de leve a face de um lago
tranquilo. Ali esqueceu-se da sua individualidade atual e encontrou a sua
identidade invisível, rico de sonhos e ideais mais altos do que as leis e os
ensinamentos dos homens. Seu círculo visual alargou-se-lhe diante dos
olhos, e os segredos da Vida tornaram-se, gradualmente, claros a ele. Sua alma
abandonou o rápido desfile do tempo, correndo para o nada; ele permaneceu só,
entre pensamentos simétricos e idéias transparentes, de tão claras. Pela
primeira vez na vida, Ali atinava com as causas da fome espiritual que o
acompanhava desde a juventude. A fome que equilibrava a amargura e a doçura da
vida. Aquela sede que une o contentamento dos suspiros da Afeição aos silêncios
da Satisfação. . . Aquele anseio que não pode ser vencido pela glória do mundo,
nem dobrado pelo perpassar dos séculos.
Ali sentiu uma onda de estranha afeição e de bondade terna
dentro de si — nada mais, nada menos que a Memória,
avivando-se como um incenso a fumegar num turíbulo de prata… Era um
amor mágico, cujos dedos macios haviam tocado o coração de
Ali como os dedos finos de um músico tocando as cordas sensíveis de
seu instrumento… Era um poder novo, emanado do nada e crescendo,
irresistivelmente, abarcando o seu ser real e enchendo o seu coração de um amor
ardente, ao mesmo tempo dolorido e doce.
Ali olhou para aquelas ruínas, e seus olhos cansados se
tornaram vivos, quando imaginou a glória daqueles devastados
santuários que ali se erguiam como antigos templos
majestosos, inabaláveis. — eternos. Seus olhos pararam e o coração lhe
palpitou no peito, acelerado… E, como um cego, cuja vista fosse,
repentinamente, recuperada, começou a ver, pensar e meditar. Vieram-lhe à
lembranças as lâmpadas e os incensórios de prata que rodeavam a imagem de uma
deusa reverenciada e adorada… Ele se lembrou dos sacerdotes oferecendo
sacrifícios diante de um altar de ouro e marfim… Vislumbrou as jovens dançando,
os tocadores de pandeiros, os cantores que entoavam hinos de louvor à Deusa do
Amor e da Beleza; viu tudo isso diante dele, e sentiu-lhes a impressão de
obscuridade nas profundezas asfixiantes do coração. Mas só a memoria não traz
nada senão os ecos de vozes ouvidas nas profundezas dos tempos idos. Qual,
então, a bizarra relação entre essas tão fortes memórias entrelaçadas e a vida
real de um jovem simples que nasceu numa tenda e passou a primavera da vida
apascentando ovelhas nos vales?
Ali encolheu-se e caminhou no meio das ruínas; e, ruminando
memórias, rompeu-se-lhe, de repente, do pensamento, o véu do esquecimento. Ao
alcançar a entrada do templo, cava e enorme, parou, como se um poder
magnético se apoderasse dele, e apressou o passo. Ao olhar para baixo descobriu
uma estátua demolida no chão. Ele se desprendeu do controle do Invisível e,
incontinenti, as lágrimas da alma desencadearam-se-lhe e
correram como sangue de uma profunda ferida. Gemeu-lhe o coração,
arfante, um fluxo e refluxo, como as agitadas ondas do mar.
Suspirou amargamente e chorou penosamente, pois sentia uma
solidão apunhalante, uma saudade dorida, como se houvesse um
abismo entre o seu coração e o coração de quem se separou antes que nascesse
nesta vida. Ele sentiu que a substância de sua alma era apenas uma
flama da tocha incandescente que Deus havia separado de Si mesmo, ante do
perpassar dos séculos. Ele percebeu o toque de plumas de delicadas asas
esvoaçantes ao redor de seu coração em brasa, e um grande amor possuindo-o… Um
amor capaz de separar a mente do mundo que se mede e se pesa… Um amor que se
ergue como um farol, a apontar o caminho, guiando com luz invisível…
Aquele amor, ou aquele Deus que desceu naquela hora calma sobre o coração
de Ali tinha imprimido em seu ser uma afeição
agridoce, como os espinhos que crescem junto a viçosas flores.
Mas quem é esse Amor, e donde veio ele? Que deseja ele de um
pastor ajoelhado no meio daquelas ruínas? Será ele uma semente lançada inconscientemente
nos domínios do coração por uma beduína? Ou raio de luz partido do fundo de uma
nuvem, para iluminar a vida? Será um sonho que se introduziu no silêncio da
noite, para ridicularizá-lo? Ou será a Verdade, que sempre existiu, desde o
Começo, e continuará existindo, até o Fim?
Ali cerrou os olhos lacrimosos e, estendendo os
braços,como um mendigo, exclamou: "Quem és tu, junto ao meu
coração e, entretanto, longe de minhas vistas, agindo, como uma
parede, entre mim e o meu ser real, ligando o meu presente a um passado
olvidado? És tu a sombra de um espectro da Eternidade, para mostrar-me a
vaidade da vida e a fraqueza da humanidade? Ou um gênio saído das feridas da
terra, para escravizar-me e tornar-me objeto de escárnio entre os jovens da
minha tribo? Quem és tu, e qual é este poder estranho que ao mesmo tempo me
mata e vivifica o coração? Quem sou eu, e que ser estranho é esse que eu chamo
de "eu mesmo"? Será que a Água da Vida que bebi me fez um anjo, vendo
e ouvindo os segredos misteriosos do Universo, ou é ela um vinho mau que me
intoxicou e me ocultou de mim mesmo?"
Ele calou-se, enquanto crescia a sua ansiedade, e seu
espírito exultava. E continuou: "Oh! aquilo que
a alma revela e a noite oculta. . . Oh! esplêndido espírito a flutuar
sobre os meus sonhos: tu acordaste em mim uma plenitude
latente como sementes férteis sob camadas de neve; passaste por
mim como uma brisa suave, trazendo ao meu coração faminto a fragrância
das flores dos céus; tocaste, agitando-os e sacudindo-os, os meus
sentidos, como as folhas de uma árvore. Deixe-me ver-te, se és
humano, ou manda que o sono feche meus olhos, para que eu possa ver a tua
grandeza, através do meu ser interior. Deixa-me tocar-te; deixa-me ouvir a tua
voz! Rompe este véu que impede o meu desejo e destrói este muro que esconde a
minha deusa da claridade dos meus olhos — e coloca-me um par de asas para que
eu possa voar contigo ao palácio do Supremo Universo. Ou enfeitiça os meus
olhos, de modo a poder seguir-te ao esconderijo dos gênios, se és uma de suas
noivas. Se mereço, coloca a tua mão sobre o meu coração e toma posse de
mim."
Ali murmurou essas palavras na noite mística, quando sentiu
a aparição das sombras da noite, como se fossem um vapor das suas
lágrimas ardentes. Nas paredes do templo imaginava ver figuras mágicas,
pintadas com o pincel do arco-íris.
Assim se passou uma hora, com Ali derramando lágrimas e
regozijando-se nos seus terríveis transes; ouvindo as pancadas de seu coração;
e olhando além das coisas, como se estivesse observando as imagens da
Vida, esvaecendo, vagarosamente, à medida que eram substituídas por um sonho,
esquisito em sua beleza, mas terrível em sua enormidade. Como um profeta
que contempla as estrelas do céu, aguardando a Hora da Revelação, ele meditava
sobre o poder existente além da sua contemplação. Percebia que o seu espírito o
abandonava e saía, entre os templos, à procura de um valioso, mas desconhecido
seguimento de si mesmo, perdido entre as ruínas.
A madrugada apontou, e o silêncio rugiu ao perpassar da
brisa. Os primeiros raios de luz deslizavam, iluminando as partículas de éter,
e o céu sorriu, como um sonhador, ao contemplar a imagem da sua
bem-amada. Os pássaros emergiam de seus ninhos das fendas das paredes e se
engolfavam nos salões entre as colunas, cantando suas preces matinais.
Ali pôs, na testa, a mão em concha, olhando para baixo com
olhos embargados. Como Adão, quando Deus lhe abriu os olhos com Seu divino
hálito, Ali viu coisas novas, estranhas e fantásticas. Então, reuniu as suas
ovelhas e chamou-as, ao que elas o seguiram, mansamente, em direção aos prados
verdejantes. Conduzia-as, enquanto contemplava, extasiado, o
céu, como um filósofo que adivinhasse os segredos do Universo,
meditando sobre eles. Alcançou um riacho, cujo murmúrio era um sedativo para o
espírito e sentou-se à beira de uma fonte sob um salgueiro, cujos
ramos mergulhavam na água, como que bebendo de suas frescas
profundezas. Gotas de orvalho brilhavam na lã das ovelhas que pastavam
entre flores e ervas verdejantes.
Em poucos momentos Ali sentiu de novo que as pancadas do
coração se lhe amiudavam rapidamente e seu espírito começava a vibrar
violentamente, quase visivelmente.Como uma mãe acordada subitamente pelo
choro de seu filho, ele saltou de sua posição e, fitando nela,
irresistivelmente, os olhos, viu uma linda mulher, trazendo um cântaro a um dos
ombros, que se aproximava, lentamente, do outro lado do riacho. Quando ela
alcançou a margem e se curvou para encher o vaso, olhou-o em frente, e seus
olhos se encontraram com os de Ali. Como se tivesse enlouquecido, deu
um grito, deixou cair o cântaro e fugiu rapidamente. Depois voltou-se, olhando,
ansiosa, para Ali, sem acreditar no que via.
Passou um minuto, cujos segundos pareceram lâmpadas
brilhantes, iluminando os seus espíritos e corações, e o silêncio lhes trouxe
uma vaga recordação, revelando-lhes imagens e cenas distantes daquelas árvores
e daquele riacho. Eles ouviram, um ao outro, no silêncio que falava, escutando,
em lágrimas, os suspiros mútuos partidos do coração e da alma, até que se
estabeleceu um completo entendimento entre os dois.
Ali, compelido, ainda, por uma força misteriosa, saltou o
riacho, aproximou-se da encantadora criatura, abraçou-a e beijou-a longamente
nos lábios. Como se a doçura dos carinhos de Ali houvesse dominado a
sua vontade, ela não se moveu, e o toque delicado nos braços de
Ali como que lhe roubou os forças. Entregou-se a
ele, como a fragrância do jasmim se entrega às vibrações da brisa,
que a leva para o firmamento. Ela descansou a cabeça no seu
peito, como um sofredor que encontrou descanso. E suspirou
profundamente… Um suspiro que anunciava o renascimento da felicidade num
coração despedaçado e soava como uma agitação de asas que subissem,
depois de terem sido feridas e derrubadas.
Ela ergueu a cabeça, a alma nos olhos — o olhar de
alguém que, em profundo silêncio, despreza as palavras convencionais usadas
entre os homens; a expressão que oferece miríades de pensamentos na linguagem
sem palavras do coração. Ela trazia a aparência de alguém que aceita o Amor,
não como uma idéia contida num grupo de palavras,
mas como um reencontro que se dá muito depois de
duas almas terem sido separadas pela terra e reunidas por Deus, de novo.
O casal enamorado caminhou entre os salgueiros e a unidade
das duas almas era a linguagem em que falavam; os olhos com que viam
a glória da Felicidade; o ouvido atento aquela magnífica revelação do Amor.
As ovelhas continuavam a pastar, e os pássaros dos céus
voejavam ainda sobre as suas cabeças, cantando a canção da Madrugada, que se
seguia à amplidão da noite. Ao chegarem ao fim do vale, o sol apareceu,
espalhando um véu dourado sobre os outeiros e as colinas, e eles sentaram ao
lado de uma pedra junto a qual se escondiam violetas. A linda mulher olhava nos
olhos negros de Ali, enquanto a brisa acariciava os seus cabelos que, assim,
pareciam pontas de dedos a pedir beijos…
Ela sentiu como se uma brandura mágica e
envolvente lhe estivesse tocando os lábios, a despeito de sua vontade, e com
uma voz serena e encantadora disse: "Ishtar restaurou os nossos espíritos
de outra para esta vida, de modo a não nos ser negada a alegria do Amor e a
glória da Juventude, meu amado".
Ali fechou os olhos, como se a voz dela lhe houvesse trazido
imagens de um sonho que ele tinha tido, e sentiu como que um par de asas
invisíveis levando-o daquele lugar e colocando-o numa estranha alcova, ao lado
de uma cama sobre a qual jazia o cadáver de uma mulher, cuja beleza havia sido
reclamada pela Morte. Ele gritou, assustado, e, abrindo os olhos, viu a mesma
mulher sentada ao seu lado, e nos seus lábios esboçava-se um sorriso. Os olhos
dela brilharam com a luz da Vida. Um brilho estranho estampou-se também no
rosto de Ali, e seu coração se reconfortou. A imagem de sua visão se retirou,
vagarosamente, até que se esqueceu, completamente, do passado e seus cuidados.
Os dois amantes abraçaram-se e beberam, juntos, o vinho de beijos capitosos,
até se embriagarem. Dormitaram, abraçados, apertadamente, até que as últimas
sombras do dia foram dispersadas pelo Poder Eterno e os despertou…
Khalil Gibran
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