sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

OUTROS CONTOS

«Um Mini Conto», por Orson W. Calabrese.

«Um Mini Conto»
Monte do Meio, por JPGalhardas

74- «Um Mini Conto»

(Diálogo entre um Escritor e o seu Pseudónimo)

Este diálogo teve lugar na grande varanda alpendrada do primeiro andar do Monte do Meio. A varanda, que estava virada para sul, era coberta por um alpendre suportado por colunas de ferro forjado. De ferro forjado era também o parapeito. As telhas mouras, assentavam num complicado desenho de vigas em madeira de azinho antigo. O chão era de lajes de xisto e ladrilhos quadrados, de barro cozido, colocados ao acaso, e que mostravam a sua antiguidade pelo aspecto gasto e poroso. A varanda comunicava com o interior do edifício por duas portas de ombreira larga e quatro janelas que ladeavam as portas.

Nas tardes soalheiras de fim do outono, era o local mais agradável do monte. Timidamente, o sol aquecia a varanda, e não era de admirar que o homem se encontrasse sentado num velho cadeirão, de madeira e couro, enquanto atacava o fornilho do cachimbo com um tabaco escuro, a que adicionou uns fios de erva que tinha retirado de uma pequena caixinha de lata. Caixinha essa que imediatamente voltou a meter no bolso do colete, como se de um bem valioso se tratasse.

MOZART
«Don Giovanni - Abertura»

Do interior da casa chegava, através das portas abertas, o som da ópera «Don Giovanni», de Mozart, enquanto uma voz de mulher tentava acompanhar, sem nenhum êxito, diga-se, os tons da soprano que executava a ária.

«Escritor»
Fumando o Cachimbo, por JPGalhardas

E foi quando o escritor já estava a cachimbar, deliciado, que o diálogo aconteceu.
Assim :

«Pseudónimo versus Escritor»
O Outro Eu, por JPGalhardas

Pseudónimo – “Estás p’raí a fumar as tuas misturas, atendendo ao vício, sem te lembrares que ainda não resolveste a questão de que falámos há dias.“
Escritor – “Não há nada para resolver. Pensei que isso tinha ficado claro.“
P. – “Nada ficou claro.“
E. – “Pois fica sabendo que não vou alterar a situação. Tu és uma criação minha e só deixarás de sê-lo quando eu entender. Fui eu quem te deu vida; fui eu quem deu a conhecer o teu nome. Fui eu quem te deu fama e fui eu quem fez de ti um homem rico. Até uma história de vida te inventei . Que mais queres tu ?“
P. – “Essa do homem rico faz-me rir. E além disso, quero ter vida própria. Não quero estar sujeito às tuas manias e aos teus devaneios de escritor de meia tigela. Quero escrever o que me der na gana, e não essas tretas a que tu dás tanta importância, mas que apenas, e só, interessam a ti mesmo.“
E. – “Olha que estás enganado! Lembra-te que o último livro de contos já vendeu cerca de quatro mil exemplares, o que, num país como o nosso, não é nada mau.“
P. – “Pois eu estou-me nas tintas para o número de exemplares vendidos. Nego-me, terminantemente, a continuar a assinar as insignificâncias que escreves.“
E. – “Já que é essa a tua opinião, amanhã mesmo, resolverei o assunto.“

O diálogo terminou neste ponto, pois de dentro de casa, chegou uma voz de mulher, perguntando se ele também queria uma chávena de chá. Ele respondeu que não, que precisava de algo mais forte.

Pouco depois entrou na varanda uma mulher de cerca de cinquenta anos. Alta e esguia. Trazia um lenço a cobrir-lhe a cabeça. No rosto, de feições magras e angulosas, mas bonitas, brilhavam dois grandes olhos cinzentos. Os olhos dos Rodriguez Potra. O seu corpo, alongado pelas calças que vestia, parecia um vime inclinado quando se debruçou para depositar a bandeja na pequena mesa. Chá e vodka, foi o lanche daqueles dois.

«Servindo o Vodka»
Cocktail, por JPGalhardas

Quando se sentou, disse que estava preocupada com o comportamento dele nos últimos dias; as suas atitudes não eram normais. Agora mesmo, estivera a falar sozinho durante muito tempo. De imediato, e de forma desabrida, exaltada, ele refutou as palavras da mulher, dizendo que essa impressão se devia aos medicamentos que ela estava tomando. Logo se arrependeu de ter proferido tais palavras.

O caso era sério e ele não devia falar assim. Ela não merecia tal tipo de resposta. – pensou.

No passado recente, depois de quase trinta anos de casamento, ele saíra de casa. Tinham vivido separados durante largos meses. Voltara para casa quando a soubera sozinha e a lutar com uma doença oncológica. Os dois filhos estavam no estrangeiro, e nem sequer tinham um conhecimento exacto do estado da mãe. Quando voltou, ela estava com a vida por um fio. Não só por causa da operação, muito melindrosa, a que tinha sido sujeita, mas também porque estava exausta psicologicamente.

Agora, porém, tudo indicava que o pior tinha sido ultrapassado. A operação, e os tratamentos de quimioterapia, assim como as últimas análises, indiciavam que o monstro tinha sido vencido.

As aflições e as incertezas, tinham-nos aproximado de novo. E, pesem embora os sustos e as inquietações provocadas por uma doença dessa natureza , no último ano, tinham-se reencontrado.

Mais tarde, já na cama, pediu à mulher para o acompanhar a Lisboa num dos próximos dias.
A experiência dela, como advogada, iria ser muito útil na conversa que queria ter com o seu editor.

O objectivo, segundo explicou, era ver-se livre de um pseudónimo.

Orson W. Calabrese

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