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«OUTROS CONTOS», (1ª Parte - Peças Soltas no Interior da Circunferência).
Poet'anarquista
«Chíbia Milongo»
Cabeça de Mulata, por Di Cavalcanti
76- «O QUARTETO DOS AGOSTINHOS»
(3ª Parte - Peças Soltas no Interior da Circunferência)
Chibía Milongo
(A mosca no leite)
A Chibía chegou à Vila em 1945. Vinha de Angola, mais
exactamente, do sul de Angola. Da cidade de Sá da Bandeira, hoje, Lubango. Era
filha de um engenheiro calipolense que administrava a linha de caminho de ferro
de Moçâmedes. Uma linha ferroviária que teria mais de mil quilómetros de
extensão e que ligava o porto da cidade de Moçâmedes à cidade de Serpa Pinto,
hoje Menongue. Filha de pai branco e mãe negra. Mestiça, portanto. À medida que
a construção da linha ia avançando para o interior do território, ela foi
vivendo de acampamento em acampamento, tendo a mãe como única professora
durante a aprendizagem das primeiras letras. Nos últimos tempos, antes de vir
para a Portugal, já estudava na cidade de Sá da Bandeira, num colégio interno.
Porém, um surto de malária que assolou essa região, decidiu os pais a enviá-la
para Vila Viçosa, temendo pela vida da filha. Ficaria a viver em casa dos avós
paternos, e aqui continuaria os estudos.
Vila Viçosa/ Terreiro do Paço
Igreja dos Agostinhos e Quartel de Cavalaria
Foi assim que chegou à Vila e
ingressou no colégio local. Com um feitio muito extrovertido, descarado mesmo,
rapidamente fez amizades entre as colegas, e rapidamente também, passou a
integrar o grupo de amigas de que trata esta narrativa. Dona de uma grande
beleza, realçada pela cor morena da pele, usava o cabelo penteado com tranças
muito finas, que ornamentava com pequeníssimas missangas. À sua maneira,
descarada e provocante, usava, preso no tornozelo, por uma fita, um pequeno
guizo que ia cantando enquanto andava. E
dizia, muito séria, “que era um costume da sua tribo, lá entre os pretos.”
Sempre com a resposta na ponta da língua, muito afiada e acutilante, é também
dela a expressão “mosca no leite“, referindo-se ao facto de ser a única
rapariga de cor no meio das restantes alunas brancas do estabelecimento de
ensino. Não foi uma aluna brilhante. Esse papel estava reservado para a Eva
Potra. No entanto, nunca perdeu nenhum ano. Manifestando pouca vontade pela
matéria dos estudos, sempre dizia que a História de Portugal apenas lhe
interessava naquilo que se prendia com o período das descobertas dos
portugueses. A forma como tinham chegado a Angola e como a tinham colonizado.
Nessa parte, sempre misturava críticas com elogios. Interessava-lhe a dinastia
dos Braganças, pois sendo D. João IV, natural de Vila Viçosa, assumia o orgulho
que o pai sentia em aqui ter nascido também. Quanto à geografia,
interessava-lhe muito mais o que se passava entre o Zaire e o Cunene, do que
entre o Minho e o Algarve. Referia com frequência o facto da mãe ser filha de um
chefe tribal do distrito do Cuando-Cubango, da região do Cuito-Cuanavale. Por
vezes, até praguejava num dialecto desconhecido para as restantes membros do
grupo. Cuanhama, assim se chamava o dialecto. E assumia com tanto orgulho os
antepassados da mãe como assumia os do pai. Complexa, muito complexa, a Chibía.
Foi a primeira pessoa a quem as restantes companheiras do quarteto ouviram
dizer que Angola seria, um dia, país independente. Estávamos em 1945, é preciso
não esquecer! No princípio da década de cinquenta, ainda o quarteto se
mantinha, e todas se juntavam naqueles bailes de passagem de ano realizados no
café Framar. Isso foi antes da Eva e da Chibía ingressarem na universidade e do
regresso da Carmen a Espanha. A Eveline frequentava a escola do Magistério
Primário em Évora.
«Chíbia Milongo de Bessangana»
Bessangana, por Neves e Sousa
A Chibía apareceu nessa passagem de ano com um traje
regional angolano, embrulhada numa capulana, que mais não era que um grande
pano, de cores imensamente garridas, que a cobria desde os ombros aos pés. Fez
furor, como, aliás, era hábito nela. Com as trancinhas coladas à cabeça e as
inevitáveis missangas. Era a mulher mais bonita do baile. Acabaram a noite
juntas, todas quatro, já a madrugada ia alta, com uma taça de champanhe a mais,
fumando umas cigarradas, num daqueles bancos da Praça da República, entre o
Framar e a Câmara. A conversa, está bem de ver, passou pelos tempos áureos do
quarteto. Uma noite de recordações, de tristezas e também gargalhadas
cristalinas. As mesmas gargalhadas cristalinas que há quase uma década vinham escandalizando
algumas boas almas, conservadoras, que sempre as há, seja onde for. Foi nessa
noite que a Chibía, finalmente, aceitou namorar com o Rufino. Há muito que ele
a queria. O Rufino, por quem todo o quarteto teve uma paixoneta, mas que sempre
tinha direccionado a sua atenção para a Chibía, conseguiu, nessa passagem de
ano, que ela o aceitasse como namorado. Mas foi sol de pouca dura. Depois dele
se formar como regente agrícola, profissão que nunca exerceu, e depois de
enveredar por uma carreira musical, que lhe trouxe alguma notoriedade, ainda
ela não tinha terminado o curso de direito, casaram. O casamento, porém, não
durou muito. Depois do nascimento da filha e de aguentarem a relação durante
alguns anos, a Chibía, pegou na miúda e foi viver para Angola.
«Chíbia e o MPLA»
Independência de Angola
Imediatamente
passou a dar corpo a velhas ideias e envolveu-se com um dos movimentos de
libertação daquela colónia. Teve uma vida muito agitada nos anos seguintes, o
que levou o Rufino a ir também para Angola afim de tomar conta da filha. Foram
anos de muitas tragédias para todos eles. Ele sempre lhe prestou todo o apoio
naqueles tempos conturbados. Tempos em que ela tanto estava presa, como em
liberdade. E, praticamente, criou a filha sozinho. Mais tarde, muito mais
tarde, já depois da independência daquela colónia, a Chibía, passou a viver com
um comandante do movimento de libertação a que pertencia. Mas nunca abandonou o
Rufino. Este, já doente, ainda chegou a viver em casa dela, no Lubango. E foi
em casa dela que ele morreu. A Chibía morreu no ano seguinte. Foi a segunda do
quarteto a desaparecer.
Eveline Sambraz
(Continuação...)
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