terça-feira, 28 de janeiro de 2014

OUTROS CONTOS

«O Quarteto dos Agostinhos», por Eveline Sambraz.

Vila Viçosa/ Paço Ducal
«Convento e Igreja dos Agostinhos»
Vila Viçosa/ Terreiro do Paço
Desenho por D. Carlos de Bragança/ 1885 

76- «O QUARTETO DOS AGOSTINHOS»

(1ª Parte - Peças Soltas no Interior da Circunferência)


Agora, quando apenas resto eu para contar a história, passados que vão muitos anos sobre o nosso último encontro, é altura de dar a conhecer melhor este quarteto que tomou o nome “dos Agostinhos”. É preciso olhar para uma velha fotografia, com mais de sessenta anos, para que as palavras possam fluir e completar aquilo que a imagem, só por si, não consegue transmitir. Ali estamos as quatro, fazendo pose para o fotógrafo, com os nossos vestidos de tecido estampado, meias brancas, curtas, e sapatos rasos. Sorrisos de orelha a orelha. Nos nossos quinze anos, simultaneamente inocentes e travessos. Como cenário, o jardim dos Agostinhos. Ainda se vê, no lado direito da fotografia, um bom pedaço do muro do lago. Foi nesse dia que assumimos o nome “dos Agostinhos”. 

Lago do Jardim dos Agostinhos
O Cisne

Antes, o nome do grupo era um pouco mais complexo – “Quarteto a Perder-se nas Brumas dos Caminhos” – Complexo, mas com lógica. Eu explico: A Eva Potra, a intelectual do grupo, tinha ido buscar o nome ao verso de um soneto da Florbela. Dizia a Eva que, tendo todas nós nascido em 1930, ano da morte da poeta, fazia todo o sentido adoptar esse nome para designar o quarteto. E assim nos chamámos durante três anos. Mas havia que simplificar as coisas. Afinal, quem éramos nós para ir buscar o nome a um verso daquela Poeta?!

***

(ERRANTE

Meu coração da cor dos rubros vinhos 
Rasga a mortalha do meu peito brando 
E vai fugindo, e tonto vai andando 
A perder-se nas brumas dos caminhos

Meu coração o místico profeta, 
O paladino audaz da desventura, 
Que sonha ser um santo e um poeta, 
Vai procurar o Paço da Ventura... 

Meu coração não chega lá decerto... 
Não conhece o caminho nem o trilho, 
Nem há memória desse sítio incerto... 

Eu tecerei uns sonhos irreais... 
Como essa mãe que viu partir o filho, 
Como esse filho que não voltou mais! 

Florbela Espanca) 

***

E foi no dia em que tirámos essa foto no jardim dos Agostinhos que, a nós próprias, atribuímos o novo nome. Já conhecem o nome de uma das integrantes do grupo, a Eva, a nossa intelectual, conforme já foi dito. Não lhe atribuo essa qualidade com ironia. Era um título merecido. Mais tarde haveria de fazer carreira no mundo das letras. Mas cada coisa a seu tempo e em seu lugar. Lá mais para a frente, voltaremos a falar da Eva Potra. Vou agora apresentar-lhes as restantes:

Chibía Milongo, azougada, muito irrequieta, lindíssima, era a mais bonita do grupo. Nascida em Angola, vivia com os avós na parte velha da vila, no interior da muralha. A Carmen Pazadiñas, espanhola de nascimento, filha de refugiados da guerra civil de Espanha, vivia com uma família portuguesa que a tinha recolhido. E eu, Eveline Sambraz, que serei a narradora desta história. 

«O Quarteto dos Agostinhos»
«Eva * Chíbia * Carmen * Eveline»
Grupo de amigas tertulianas
(Os instrumentos só para a pose fotográfica)

Como curiosidade quero acentuar que sou a única alentejana do grupo. E a única que aqui nasceu e que aqui sempre viveu. Todas as outras, logo que completaram os estudos possíveis no colégio da Vila, rumaram para outros futuros: A Eva, foi para belas artes, em Lisboa. Aí, fez arquitectura, mas rapidamente começou a escrever e a meter-se na política, deixando a arquitectura para outros. Presa várias vezes, não foram poucas as ocasiões em que a visitei na prisão. A Chibía regressou a Angola no início da década de sessenta, aonde também se deixou imbuir pelo espírito nacionalista e passou a integrar um dos movimentos de libertação que lutavam contra a presença portuguesa naquela colónia. Quanto à Carmen Pazadiñas, voltou para Villanueva del Fresno, para se juntar aos membros da sua família que escaparam à razia da guerra civil espanhola. Aí viveu durante o resto da vida. Que não foi longa, aliás. Ah .... e eu .... que, tirando o curso no Magistério, me tornei professora  e durante quase quarenta anos de ensino, sempre em escolas da vila ou arredores, me passaram pelas aulas centenas ou mesmo milhares de alunos. Pois aqui têm todas as integrantes deste quarteto. A todas elas, eu incluída, dedicarei mais algumas linhas, afim de que possam conhecê-las melhor, lá mais para a frente, durante a narrativa. 

«Rufino»
Caricatura (?), por JPGalhardas

O curioso é que o quarteto esteve quase a ser um quinteto. O quinto elemento teria sido do sexo masculino. Exactamente. O Rufino esteve prestes a fazer parte do grupo, mas a gozação a que outros companheiros dele o submeteram impediu-o de fazer parte da tertúlia. Nessa época, fazer parte de um grupo de raparigas, era assim uma espécie de fraqueza e ele não esteve para aturar aquilo. Era, nessa altura, o rapaz mais interessante de Vila Viçosa. Todas estávamos apaixonadas por ele e hoje penso que a sua entrada no grupo teria sido um motivo de ciumeiras e discórdia entre nós. Manteve-se afastado, mas sempre acompanhou, à distância, as nossas actividades. Acabou por casar com a Chibía Milongo, e embora o casamento não tivesse resultado, acompanhou-a quando ela quis regressar a Angola. Morreu por lá. Está enterrado em Lubango, antiga cidade de Sá da Bandeira. Também voltarei a referi-lo durante esta narrativa pois talvez seja ele o mais interessante caso de vida. Como decerto já se aperceberam, éramos um grupo de raparigas que, curiosas das coisas da vida, procurámos, dentro das limitações que a sociedade calipolense dessa época oferecia, ver um pouco para além dessa mesma sociedade. Não que a vila não oferecesse motivos de interesse. Era mesmo um exemplo de povoação do interior, sendo apontada como modelo daquilo que o Alentejo tinha de melhor. Já nessa altura possuía uma grande unidade fabril que, dependendo das épocas do ano, dava trabalho a muitas dezenas ou mesmo centenas de pessoas. Possuía bons estabelecimentos de ensino, que atraíam alunos das povoações em volta e tinha uma vida associativa muito intensa, com várias sociedades, artísticas e culturais, a rivalizarem entre si. Desde já aviso que não é minha intenção fazer aqui uma análise da vida social de Vila Viçosa nessa altura, apenas pretendo, com o que atrás ficou dito, recriar o contexto em que se desenvolveu a amizade e relação daquele grupo de raparigas. E do que, sendo do meu conhecimento, se passou antes. Assim como do que se passou a seguir.

Eveline Sambraz

(Continuação...)

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