«Passeio Nocturno II»
Abstracto/ Passeio Nocturno 2, por JFMachado
69- «PASSEIO NOCTURNO II»
Eu ia para casa quando um carro encostou no meu, buzinando
insistentemente. Uma mulher dirigia, abaixei os vidros do carro para entender o
que ela dizia. Uma lufada de ar quente entrou com o som da voz dela: Não está
mais conhecendo os outros?
Eu nunca tinha visto aquela mulher. Sorri polidamente. Outros
carros buzinaram atrás dos nossos. A avenida Atlântica, às sete horas da noite,
é muito movimentada.
A mulher, movendo-se no banco do seu carro, colocou o braço
direito para fora e disse, olha um presentinho para você.
Estiquei meu braço e ela colocou um papel na minha mão.
Depois arrancou com o carro, dando uma gargalhada.
Guardei o papel no bolso. Chegando em casa, fui ver o que
estava escrito. Ângela, 287-3594.
À noite, saí, como sempre faço.
No dia seguinte telefonei. Uma mulher atendeu. Perguntei se
Ângela estava. Não estava. Havia ido à aula. Pela voz, via-se que devia ser a
empregada. Perguntei se Ângela era estudante.
Ela é artista, respondeu a mulher.
Liguei mais tarde. Ângela atendeu.
Sou aquele cara do Jaguar preto, eu disse.
Você sabe que eu não consegui identificar o seu carro?
Apanho você às nove horas para jantarmos, eu disse. Espera aí, calma. O que foi
que você pensou de mim? Nada.
Eu laço você na rua e você não pensou nada?
Não. Qual é o seu endereço?
Ela morava na Lagoa, na curva do Cantagalo. Um bom lugar.
Estava na porta me esperando.
Perguntei onde queria jantar. Ângela respondeu que em
qualquer restaurante, desde que fosse fino. Ela estava muitO diferente. Usava
uma maquiagem pesada, que tornava o seu rosto mais experiente, menos humano.
Quando telefonei da primeira vez disseram que você tinha
ido à aula. Aula de quê?, eu disse.
Impostação de voz.
Tenho uma filha que também estuda impostação de voz.
Você é atriz, não é?
Sou. De cinema.
Eu gosto muito de cinema. Quais foram os filmes que você
fez?
Só fiz um, que está agora em fase de montagem. O nome é meio
bobo, As virgens desvairadas, não é um filme muito bom, mas estou
começando, posso esperar, tenho só vinte anos.
Na semi-escuridão do carro ela parecia ter vinte e cinco.
Parei o carro na Bartolomeu Mitre e fomos andando a pé na
direção do restaurante Mário, na rua Ataulfo de Paiva.
Fica muito cheio em frente ao restaurante, eu disse. O
porteiro guarda o carro, você não sabia?, ela disse. Sei até demais. Uma vez
ele amassou o meu.
Quando entramos, Ângela lançou um olhar desdenhoso sobre as
pessoas que estavam no restaurante. Eu nunca havia ido àquele lugar. Procurei
ver algum conhecido. Era cedo e havia poucas pessoas. Numa mesa um homem de
meia-idade com um rapaz e um moça. Apenas três outras mesas estavam ocupadas,
com casais entretidos em suas conversas. Ninguém me conhecia.
Ângela pediu um martíni.
Você não bebe?, Ângela perguntou.
Às vezes.
Agora diga, falando sério, você não pensou nada mesmo,
quando eu te passei o bilhete?
Não. Mas se você quer, eu penso agora, eu disse. Pensa,
Ângela disse.
Existem duas hipóteses. A primeira é que você me viu no
carro e se interessou pelo meu perfil. Você é uma mulher agressiva,
impulsiva e decidiu me conhecer. Uma coisa instintiva. Apanhou um pedaço de
papel arrancado de um caderno e escreveu rapidamente o nome e o telefone.
Aliás quase não deu para eu decifrar o nome que você escreveu.
E a segunda hipótese?
Que você é uma puta e sai com uma bolsa cheia de pedaços de
papel escritos com o seu nome e o telefone. Cada vez que você encontra um
sujeito num carro grande, com cara de rico e idiota, você dá o número para ele.
Para cada vinte papelinhos distribuídos, uns dez telefonam para você.
E qual a hipótese que você escolhe?, Ângela disse. A
segunda. Que você é uma puta, eu disse.
Ângela ficou bebendo o martíni como se não tivesse ouvido o
que eu havia dito. Bebi minha água mineral. Ela olhou para mim, querendo
demonstrar sua superioridade, levantando a sobrancelha - era má atriz, via-se
que estava perturbada - e disse: você mesmo reconheceu que era um bilhete escrito
às pressas dentro do carro, quase ilegível.
Uma puta inteligente prepararia todos os bilhetinhos em
casa, dessa maneira, antes de sair, para enganar os
seus fregueses, eu disse.
E se eu jurasse a você que a primeira hipótese é a
verdadeira. Você acreditaria?
Não. Ou melhor, não me interessa, eu disse.
Como que não interessa?
Ela estava intrigada e não sabia o que fazer. Queria que eu
dissesse algo que a ajudasse a tomar uma decisão. Simplesmente não interessa.
Vamos jantar, eu disse. Com um gesto chamei o maitre. Escolhemos a comida.
Ângela tomou mais dois martínis.
Nunca fui tão humilhada em minha vida. A voz de Ângela soava
ligeiramente pastosa.
Eu se fosse você não bebia mais, para poder ficar em
condições de fugir de mim, na hora em que for preciso, eu disse.
Eu não quero fugir de você, disse Ângela esvaziando de um
gole o que restava na taça. Quero outro.
Aquela situação, eu e ela dentro do restaurante, me aborrecia.
Depois ia ser
bom. Mas conversar com Ângela não significava mais nada para
mim, naquele momento interlocutório.
O que é que você faz?
Controlo a distribuição de tóxicos na zona sul, eu disse.
Isso é verdade?
Você não viu o meu carro?
Você pode ser um industrial.
Escolhe a sua hipótese. Eu escolhi a minha, eu disse.
Industrial.
Errou. Traficante. E não estou gostando desse facho de luz
sobre a minha cabeça. Me lembra as vezes em que fui preso. Não acredito numa só
palavra do que você diz.
Foi a minha vez de fazer uma pausa.
Você tem razão. É tudo mentira. Olha bem para o meu rosto.
Vê se você consegue descobrir alguma coisa, eu disse.
Ângela tocou de leve no meu queixo, puxando meu rosto para o
raio de luz que descia do teto e me olhou intensamente.
Não vejo nada. Teu rosto parece o retrato de alguém fazendo
uma pose,
um retrato antigo, de um Desconhecido, disse Ângela.
Ela também parecia o retrato antigo de um desconhecido.
Olhei o relógio.
Vamos embora?, eu disse.
Entramos no carro.
Às vezes a gente pensa que uma coisa vai dar certo e dá
errado, disse Ângela.
O azar de um é a sorte do outro, eu disse.
A lua punha na lagoa uma esteira prateada que acompanhava o
carro. Quando eu era menino e viajava de noite a lua sempre me acompanhava,
varando as nuvens, por mais que o carro corresse.
Vou deixar você um pouco antes da sua casa, eu disse. Por
quê?
Sou casado. O irmão da minha mulher mora no teu edifício.
Não é aquele que fica na curva? Não gostaria que ele me
visse. Ele conhece o meu carro. Não há outro igual no Rio. A
gente não vai se ver mais?, Ângela perguntou. Acho difícil.
Todos os homens se apaixonam por mim.
Acredito.
E você não é lá essas grandes coisas. O teu carro é
melhor do que você, disse Ângela.
Um completa o outro, eu disse.
Ela saltou. Foi andando pela calçada, lentamente, fácil de
mais, e ainda por cima mulher, mas eu tinha que ir logo para casa, já estava
ficando tarde.
Apaguei as luzes e acelerei o carro. Tinha que bater e passar
por cima. Não podia correr o risco de deixá-la viva. Ela sabia muita coisa a
meu respeito, era a única pessoa que havia visto o meu rosto, entre todas as
outras. E conhecia também o meu carro. Mas qual era o problema? Ninguém havia
escapado.
Bati em Ângela com o lado esquerdo do pára-lama, jogando o
seu corpo um pouco adiante, e passei, primeiro com a roda da frente - e senti o
som surdo da frágil estrutura do corpo se esmigalhando - e logo atropelei com a
roda traseira, um golpe de misericórdia, pois ela já estava liquidada, apenas
talvez ainda sentisse um distante resto de dor e perplexidade.
Quando cheguei em casa minha mulher estava vendo televisão,
um filme colorido, dublado.
Hoje você demorou mais. Estava muito nervoso?, ela disse.
Estava. Mas já passou. Agora vou dormir. Amanhã vou ter um dia
terrível na companhia.
Rubem Braga
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