«Menino a Acender uma Vela
na Companhia de um Macaco e um Tolo»
Alegoria de: El Greco
70- «UM TOLO»
O que é um imbecil? Parece que todo mundo sabe; no entanto,
ao se examinar de perto em que sentido esse termo é ordinariamente empregado,
vê-se que cada um o entende à sua maneira. Segundo o dicionário académico que
dá a significação de todas as palavras, “um imbecil é um fraco de espírito, um
homem estúpido, desprovido de inteligência, um louco, um bufão”... diz-se
“tolo” ou “bobinho” quando se quer abrandar de alguma forma o alcance da
palavra “imbecil”. As explicações do dicionário param por ai; inútil pesquisar
mais. Ora, acontece-nos às vezes encontrar sujeitos que tratamos correntemente
como imbecis ou tolos e que não são, no entanto, nem estúpidos, nem fracos de
espirito, nem loucos e cujos gestos e palavras nada têm de bufões... São tipos
curiosos. Vou contar-lhes a historia de um deles.
Tínhamos no campo, entre nossos criados, um pequeno órfão,
Pagnka. Vivia nas dependências da casa senhorial, usava roupas que lhe davam e
comia com a vaqueira e seus filhos. Suas funções em casa consistiam em “ajudar todo
mundo”. Em outras palavras, cada um tinha o direito de mandar Pagnka fazer sua
própria tarefa; por isso ele trabalhava sem parar. Vejo-o ainda: quando no
inverno- os invernos na nossa região são terríveis-, tão logo despertos, nos
precipitávamos para as janelas, Pagnka, todo recurvado, já puxava o trenó
carregado de feno, de palha e de sacos de grão para alimentação do gado e das
aves. Nós, crianças, mal acabávamos de nos levantar, e Pagnka já tinha
terminado muitas tarefas. Às vezes a gente o via sentar-se por um momento num
canto e comer apressado um pedaço de pão. Se lhe perguntavam então:
- Por que, Pagnka, você come seu pão seco?
Ele respondia sorrindo:
- Seco? Olhe só, eu tenho água fresca.
- Você deveria pedir que lhe dessem alguma coisa junto com o
pão: couve, pepino, algumas batatas...
Mas Pagnka balançava a cabeça e respondia:
- E o que mais?... Estou satisfeito, graças a Deus!
Ele apertava o cinto e se punha a trabalhar. Trabalho não
faltava, por que todo nosso pessoal se deixava ajudar por ele. Ele limpava as
estrebarias e os estábulos, dava de comer ao gado, levava os carneiros a beber;
e de noite ainda achava tempo para tecer sandálias de tomento para si mesmo e
para os outros. Ele se deitava depois de todo o mundo e se levantava antes da aurora.
Por isso estava sempre miseravelmente vestido. E, no entanto, ninguém tinha
pena dele; as pessoas diziam:
- Que lhe importa!... É um tolo!
-Por que um tolo? Onde é que se vê que ele é um tolo?
- Em tudo...
- Mas onde?...
- Pra que procurar?... A vaqueira dá todos os seus pepinos e
batatas aos seus filhos e ele nem se toca... não pede nada à vaqueira e não se
queixa dela nunca... Um imbecil!
Nós, as crianças, éramos incapazes de nos dar conta por nós
mesmos se Pagnka era ou não imbecil. Nunca o ouvíamos dizer tolices; ao
contrario, ele se mostrava muito gentil para nós; fazia-nos pequenos moinhos e
caixas de casca de bétula. Mas dizíamos como todo o mundo que Pagnka era um
tolo; ninguém duvidava disso. Aliás, aconteceu logo um caso depois do qual qualquer
dúvida a esse respeito teria sido impossível.
Tínhamos um administrador extremamente severo, que tinha por
regra não deixar nunca uma falta impune. Percorria a propriedade de carruagem
olhando de um lado e de outro, atento à menor desordem. E, se notava alguma
coisa, mandava parar a carruagem, chamava o culpado e lhe dizia:
- Vá imediatamente ao escritório e diga de minha parte ao
amanuense que lhe mande dar 25 vergastadas. Se tentar me enganar, mandarei
dar-lhe o dobro disso esta noite.
Ninguém ousava desculpar-se nem implorar seu perdão: isso o
tornava furioso e ele aumentava a dose.
Um dia – era verão- o administrador faz sua inspeção e vê
que alguns potrinhos haviam penetrado num campo de trigo; eles pisoteavam os
brotos e arrancavam as raízes com seus cascos...
O administrador põe-se então a fazer um escarcéu.
Nesse ano, a guarda dos potros estava confiada a Petrucha, o
filho da vaqueira Arina, a mesma que nunca dava batata a Pagnka, reservando-as
para seus filhos. Petrucha tinha então 12 anos; muito menor e mais delicado de
compleição que Pagnka, era um menino mimado, pouco apto para o trabalho, pouco
resistente a pancadas. Tinha levado os potros para o campo desde a aurora;
ainda estava frio e ele tinha sentido calafrios; então sentara-se, pondo o manto
sobre a cabeça, e adormecera aquecido, enquanto os potros se punham a galopar
nos trigais.
O administrador deu uma boa chicotada em Petrucha e lhe
disse:
- Pagnka fará o trabalho dele e o seu, e você, vá ao
escritório e diga que lhe dêem 25 vergastadas; se eu souber, ao voltar, que
minha ordem não foi executada, mandarei dar-lhe cinquenta vergastadas na minha
frente.
A essas palavras, foi embora.
Eis que Petrucha se põe a soluçar; treme de medo: nunca
tinha sido chicoteado. Disse a Pagnka:
- Pagnka, meu irmãozinho, tenho medo... o que vou fazer?
Pagnka acariciou-lhe os cabelos e disse-lhe:
- Eu também tive medo na primeira vez... Não há nada a
fazer... Cristo também foi chicoteado...
Mas Petrucha chorava amargamente:
- Tenho medo de ir lá... Tenho medo de não ir... Vou
afogar-me.
Pagnka esforçou-se em consolá-lo e acalmá-lo, depois,
finalmente, disse-lhe:
- Escute bem; fique aqui; faça o seu trabalho e
encarregue-se também do meu. Vou ao escritório e tentarei dar um jeito nisso.
Talvez Deus tenha piedade de você. Você é um medroso e tanto!
Petrucha perguntou-lhe:
- E como você vai dar um jeito nisso, Pagnka?
- Pensei num truque, farei o possível.
Pagnka correu através dos campos até o escritório; uma hora
depois, voltava todo sorridente.
- Não tem nada Petrucha – disse- Está tudo arranjado. Você
não precisa ir lá, sua punição foi suspensa.
Petrucha pensou com seus botões:
“Tanto pior, prefiro acreditar nele.” E não foi ao
escritório. No entanto, à tardinha, o administrador perguntou ao amanuense:
- O pequeno pastor que mandei vir aqui de manhã veio para
ser chicoteado?
- E como! Veio, sim.
- E então? Bombardearam-no?
- Perfeitamente.
- Como de praxe?
- Da melhor maneira; deu trabalho.
A coisa ficou por aí; mas, soube-se depois que tinha havido
um erro: não foi Petrucha que chicotearam, mas Pagnka. Contaram essa história
por toda parte, em casa e na aldeia, e todos riram de Pagnka; todavia, Petrucha
não foi chicoteado:
- Já que esse imbecil salvou a pele dele – diziam -, tanto
melhor para ele; não se pode chicotear os dois pela mesma falta.
Alguns anos se passaram e veio a Guerra da Criméia;
precisaram de soldados. Nas aldeias, só se ouviam por toda parte choros e
lamentações: ninguém quer ir à guerra. As mães, sobretudo, angustiavam-se por
causa dos filhos; tinham pena deles, naturalmente.
Pagnka, nessa época, já era maior. Um belo dia veio procurar
seu patrão e lhe disse:
- Mande-me à cidade. Quero ser soldado.
- Mas que ideia!
- É, é a minha ideia. Desejo ser soldado.
- Por que motivo? Pense!
- Não, não tenho tempo para pensar.
- E por que você não tem tempo?
- O senhor não ouve os choros? Ora, ninguém chorará por mim.
Sou órfão, o preferido de Deus. Quero ir.
Tentaram dissuadi-lo.
- Olhe para si mesmo – disseram-lhe. – Você é canhestro,
desajeitado, vão rir de você na guerra!...
E ele respondeu:
- Tanto melhor! Vale mais rir que brigar; se todo o mundo se
puser a rir, vai haver paz.
Insistiram de novo:
- Fique em casa e divirta-se sozinho, em lugar de divertir
os outros.
Mas ele permaneceu firme:
- Não, será mais consolador ir.
Então “consolaram-no”; mandaram-no à cidade e
apresentaram-no ao escritório de recrutamento. Quando os que tinham acompanhado
voltaram à aldeia, foram assaltados por perguntas:
- Com que então nosso imbecil ficou por lá? Viram-no na
caserna?
- Claro!
- Certamente todo o mundo zomba dele, não é? Um palerma
daqueles!
- Sim, no início, riam dele; mas, com dois rublos que lhe
tínhamos dado, ele comprou no mercado cestas de pastéis de sêmola com purê de
ervilha e distribuiu tudo sem pensar em si... Então seus camaradas balançaram a
cabeça e cada um quis dar-lhe a metade de seu pastel; mas ele ficou confuso e
lhes disse:
- O que estão fazendo, irmãos? Agi sem segundas intenções,
comam!
Então os recrutas deram-lhe tapinhas no ombro:
- Você é um rapaz bom – disseram-lhe.
E no dia seguinte de manhã, na caserna, ele se levantou
antes de todo o mundo e limpou tudo; em seguida engraxou as botas de todos os
soldados veteranos. Os veteranos o elogiaram muito, mas nos perguntaram:
- Vocês nos trouxeram um imbecil, mas ele é mesmo um maluco
de nascença?...
Por mais tolo que fosse, Pagnka foi à guerra, mas na
qualidade de “coveiro”: ele estava encarregado das fossas-privadas; quando se
levantava acampamento, ele ficava na retaguarda e enterrava a sujeira dos
outros.
Terminado seu tempo de serviço, Pagnka se engajou como
pastor entre tártaros da estepe: levava a pastar sua manada de cavalos.
Ele vagou assim durante anos, em algum lugar além do Penza,
nos confins do deserto dos Rynn-Peski, onde reinava como senhor um ricaço, Khan
Djangar. Quando vinha vender seus cavalos em Sura, esse Khan Djangar se
comportava modestamente, mas em sua casa, nas estepes, fazia absolutamente tudo
o que queria, enviando uns para o suplício, recompensando outros, segundo sua
fantasia.
Era impossível controlar suas ações nesse país selvagem e
distante dos centros administrativos. No entanto, Khan Djangar tinha inimigos;
um deles, um certo Khabibula, atacava constantemente sua manada e roubava seus
mais belos cavalos. Os homens de Khan Djangar não conseguiam agarrá-lo. Um dia,
entretanto, houve uma grande batalha entre os tártaros; Khabibula, ferido, foi
feito prisioneiro. Ora, Khan Djangar devia ir a Penza e não tinha tempo de
julgar Khabibula nem de condená-lo a algum suplício terrível que pudesse servir
de exemplo aos outros ladrões de cavalos.
Com pressa de ir à feira de Penza e temendo também exibir-se
com Khabibula numa região onde autoridades russas se teriam metido em seus
negócios, Khan Djangar decidiu deixar Khabibula ferido e acorrentado junto de
uma fonte mirrada sob a guarda de Pagnka. Deu a este farinha, um odre e lhe
disse num tom severo:
- Vigie esse homem como se fosse sua alma! Entendeu?
Pagnka respondeu:
- Não é difícil. Compreendo e farei exatamente como você
disse.
Khan Djangar e sua comitiva partiram a galope. Então Pagnka
disse a Khabibula:
- Eis aonde o levaram os seus roubos! Você é forte e
corajoso, mas empregou sua força em fazer o mal e não o bem. Seria melhor que
você se emendasse.
E Khabibula respondeu-lhe:
- Se não me emendei até agora, é tarde demais, não tenho
tempo.
- Não tem tempo? Por quê? O principal é querer sinceramente
emendar-se, o resto virá por si... Você tem uma alma dentro do seu corpo, como
todos os homens; abandone o mal e Deus o ajudará logo a fazer o bem, e então
tudo será perfeito.
Khabibula o escutou e suspirou:
- Não - disse -, não é o momento de pensar nisso.
- Por que não é o momento?
- Porque estou acorrentado e espero a morte.
- Mas eu vou deixá-lo ir embora.
Khabibula não acreditou nos próprios ouvidos, mas Pagnka
sorriu-lhe com doçura e disse:
- Não estou brincando, estou lhe dizendo a verdade. Khan
Djangar me recomendou que o vigiasse “como se fosse minha alma”; ora, você sabe
como se deve vigiar a alma? Não se deve ter piedade dela, irmão! É necessário
que ela sofra por outrem. É disso precisamente que tenho necessidade, porque
não posso suportar que se atormentem os outros. Vou retirar as suas correntes e
pôr você no seu cavalo. Vá embora, fuja para onde quiser; mas, se você recomeçar
a fazer o mal, não será a mim, mas a Deus que você terá mentido.
Tendo falado assim, Pagnka quebrou as correntes de Kabibula,
colocou-o na sela e disse-lhe:
- Vá em paz para onde quiser.
Ele mesmo ficou à espera de Khan Djangar. Esperou por muito
tempo. Quando ele chegou com seus tártaros, a fonte estava seca e não sobrava
quase água nenhuma no odre.
Khan Djangar olhou à direita e à esquerda e perguntou a
Pagnka:
- Então, onde está Khabibula?
Pagnka respondeu:
- Deixei-o ir embora.
- Como assim? Que história é essa?
- Eu lhe digo que agi segundo sua ordem e segundo minha
vontade. Você me ordenou que o vigiasse como se fosse minha alma; ora, eu amo a
tal ponto a minha alma, que quero que ela sofra por outrem... Você pretendia
mandar matar Khabibula nos suplícios, mas não suporto que se atormentem os
outros... Tome a mim então e torture-me no lugar dele, a fim de que minha alma
seja feliz e livre de todo terror, porque não temo absolutamente nada, nem a
você nem a ninguém.
Khan Djangar arregalou os olhos, coçou a cabeça, depois
disse aos que o cercavam:
- Aproximem-se todos e vou dizer-lhes o que me parece.
Os tártaros rodearam Khan Djangar, que lhes disse, a
meia-voz:
- Acho que não se pode matar Pagnka, porque me parece que um
anjo habita nele.
- Sim – responderam baixinho os tártaros -, não podemos
fazer-lhe mal: há muito tempo que ele está conosco, mas não o compreendíamos; e
agora, num instante, ficou claro para nós: talvez ele seja mesmo um justo.
Nicolau Leskov
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