«A Prova de Força»
Navio, por William Turner
136- «A PROVA DE FORÇA»
– O senhor também gosta de ver os navios?…
Era um velho de cabelos brancos e olhos azuis, com as mãos
enfiadas nos bolsos dum casaco de boa fazenda escocesa, onde uns traços mais
escuros formavam grandes quadrados. Mas as calças desbotadas esfiampavam-se de
velhas. Também o casaco.
Ao sorriso amargo da sua interrogação respondi com a
contrariedade de quem vai ouvir um pedido de esmola justificado numa
história vulgar.
- Trabalha-se a valer… — respondi, numa evasiva à pergunta,
como se não quisesse confidenciar gostos a um desconhecido.
Meti a mão no bolso das calças, para tirar o porta-moedas,
mas hesitei, reparando melhor naquele homem que me fitava com um olhar vago,
como se já não estivesse a ver-me. Agora o seu sorriso era longínquo e irónico,
talvez reflectido duma memória antiga, onde estava verdadeira essa expressão de
superioridade. E acrescentei:
- Isto é interessante. Tem cor e movimento…
Achei-me ridículo ao dizer esta frase que não significava
nada para aquele homem. Para mim também não eram só isso, aqueles navios e
comboios, as docas, os guindastes, o formigar de gente, que se via daquele
jardim como um terraço sobre o rio.
- Já andei naqueles barcos… Naqueles, não; noutros como
aqueles… Fez bem em não falar de aventuras… (Esta expressão «Fez bem» colocou-o
de repente numa posição de superioridade em relação a mim.) Em não falar
de sonhos de países desconhecidos, dessas coisas que são mentiras… Vamos lá
para ganhar dinheiro, roubar, jogar dobrado contra singelo, fugir às leis…
E às vezes até parecemos uns homens fortes… No fim de contas é só o dinheiro e
o amor.
Fez uma pausa. E eu olhei em volta, a procurar nas
caras das pessoas que estavam por ali perto uma informação a respeito
deste “filósofo” que falava comigo. Talvez estivessem a rir-se dele, ou de
mim, que o ouvia com atenção. Era, com certeza, um maníaco já bem conhecido dos
frequentadores daquele jardim público onde eu tinha parado por acaso, nessa
tarde em que passeava sem destino. Mas os três ou quatro homens que
estavam encostados às grades, olhavam também lá para baixo, para os navios
atracados às muralhas, ao longo do rio, ou amontoados nas docas. Vinha um
martelar estridente e compassado, dum velho cargueiro onde faziam reparações e
pinturas; ao lado de um outro, de porões abertos, dois guindastes descarregavam
lingadas de sacos. Ao longe, pequenos barcos pintados de branco atravessavam o
rio cinzento. E as gaivotas, em voos serenos, pairavam, atentas, sobre os
lugares onde descarregavam peixe ou desaguavam os canos de esgoto. Nos
topos dos mastros, bandeiras de várias cores caíam sem vento. E um grande
paquete estrangeiro dormia encostado ao cais, abandonado.
Um grupo de rapazes invadiu o jardim e numa das ruas brancas
de saibro começou a jogar a bola.
Eu não me tinha esquecido do velho, mas julgava que ele não
tivesse mais nada para me dizer. E seguia as primeiras fases da luta
desportiva, quando lhe ouvi a voz, que continuava:
- …Ou tudo ou nada: de cada coisa que temos na mão. Ou
tudo ou nada. Puxar de um lado, não. Os outros têm de largar. Por exemplo: as
mulheres…
Olhei-o com desconfiança. Era um louco. Não porque falar de
mulheres seja uma loucura. Mas é uma fraqueza ou uma vaidade… E um velho não
tem essas fraquezas nem essas vaidades. Ou então era um poeta.
Compreendi que para o seu monólogo íntimo precisava de ter
na frente outra pessoa. Por isso falava diante de mim, que lhe tinha calhado na
hora própria. E percebi na sua voz serena um tom de fina ironia para consigo
mesmo.
- As mulheres não são como uma maçã que se pode comer
toda. As mulheres pensam… E o pensamento foge. É preciso descobrir-lhe
a direcção e fazê-lo esbarrar. E a nossa prova de força… Filósofo,
filósofo, diz bem…
Com um sorriso de condescendência deixei-o imaginar o que eu
não dizia nem pensava. De repente mudou de tom e perguntou-me com uma voz
tranquila de indiferença:
- O senhor é casado?
- Não.
- Eu sou. – Tinha tirado o cachimbo e carregava-o devagar,
com o dedo curto e largo como uma barbatana, lentamente, como se praticasse
um acto de ritual que deve demorar certo tempo. - Sou…legalmente. Quer dizer:
separei-me. Era escriturário na Alfândega e conheci-a no Jardim Zoológico, num
domingo no Verão, quando estávamos a ver um hipopotamozinho que tinha lá
nascido. Não gosto dos hipopótamos. Têm um ar estúpido. Compare com os
ursos: esses, sim, são inteligentes e têm graça. Eu vou ao Jardim Zoológico só
pelos ursos. E pelos pássaros… Também tenho pássaros. Andam pela casa toda.
Sempre é uma gaiola maior. Pus redes nas janelas.
- Sujam tudo.
Olhou-me com desconfiança.
- O senhor também tem a mania das limpezas?
- A mania, não. Mas há coisas que têm de estar limpas.
- Sim. Há coisas que têm de estar limpas. E estão. É fácil.
Bem vê, é como se vivesse na gaiola dos pássaros. – E riu-se com bom humor. –
Tenho as minhas coisas guardadas nuns armários. E o resto é todos os dias limpo
como uma boa gaiola. Das coisas que gostamos de fazer porque não havemos de
fazer, ao menos, as que podemos? Eu não defendo os exageros de liberdade. Só
para certas pessoas, para haver progresso…Mas o hipopotamozinho era feio. E eu
disse em voz alta: «Irra, que é feio!» Como uma opinião pode modificar a nossa
vida! Ela olhou para mim e vi que era bonita. Casámos e as minhas teorias
começaram a bater certas: domínio e mitologia. Na Grécia os deuses estavam no
Olimpo. Quando desciam, eram homens. Nas outras religiões são invisíveis.
A distância engrandece tudo, porque deixa o espaço para a imaginação. O
espaço e o tempo. Eu era escriturário da Alfândega: não dá prestígio para muito
tempo: um conto e duzentos. E tudo sempre mais caro… De tal maneira que um dia
começou a falar de navios e das fardas dos oficiais. Quando uma mulher começa a
falar de navios, não tenha dúvidas, está tudo perdido. Então todos os nossos
passeios passaram a ser aqui pelas docas, pelos cais, visitávamos os navios,
grandes e pequenos, tudo… Era infalível. Pó de carvão, berros, obscenidades.
Desiludiu-se. E eu deixei a Alfândega e arranjei um lugar de convés, no
«Zoavo», um petroleiro que andava na carreira da Venezuela. Tinha uma farda e
fiz os meus negócios… Atirei-a para o luxo. Evitar as distâncias… Bem sabia o
perigo, bem sabia… E contava-lhe histórias. Histórias com moral…
Eu observava-o com atenção, com a curiosidade que pode despertar
uma figura estranha, que nos vem contar uma história extravagante. Puxou-me
pelo braço e indicou, ao longe, um ponto no meio do rio:
- O passeio de barco. Era um simples passeio por causa do
calor. Agradável… «Aqui sou eu o “capitão!”», berrei. E pus-me em pé no barco.
Deu um grande balanço e ela começou a gritar. É negra, a água do rio… Se eu não
tivesse caído de costas no meio do barco, talvez não tivesse acontecido mais
nada. Mas levantei-me, furioso. Quer dizer, fiquei de joelhos, a bater no peito
com o punho fechado e a gritar «O “capitão” sou eu! Aqui sou eu!»…
Vi-lhe os olhos vidrados de lágrimas. E batia no peito, com
murros que soavam a oco. De repente passou-lhe aquele ataque de fúria e,
olhando para mim, com uma expressão de humildade, disse numa voz doce:
- Choro com facilidade… Não quer dizer nada… Porque é que
fiquei ali de joelhos, diante dela, a chorar? Para lhe provar a minha
autoridade e a minha força, meti-lhe medo e fiz-me ridículo… Nem tinha provas
de que ela fosse amante do tal capitão… Mas nunca mais podia ser o mesmo homem
que tinha sido até ali. E quando me pus em pé o barquito virou-se…
Com as duas mãos enclavinhadas na grade do jardim, olhava lá
para baixo como se estivesse agarrado à borda do barco que se virava. Depois de
um longo silêncio, apontou para o cais onde formigavam homens que deixavam o
trabalho, camiões e bicicletas, e com o dedo, numa voz natural, como se eu dali
pudesse distingui-lo:
- O Rola… Anda no «Guiné»…
E piscou-me o olho, como quem sabe coisas. Ainda tinha na
mão o cachimbo apagado. Meteu-o entre os dentes e rosnou:
- Tem um fósforo?
Dei-lhe a caixa e enquanto, com a mão, protegia a chama e
puxava as primeiras fumaças, ia resmungando:
- Então o senhor também gosta de navios… (Lá vem o Rola… Já
traz a «coca»…) Também gosta de navios… Faz bem à alma… faz bem…
António Branquinho da Fonseca
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