«Gulodice»
Conto de Mário-Henrique Leiria
462- «GULODICE»
A maior parte das pessoas come bolos executando uma espécie
de rito. Olha-os, regala-se por antecipação, observa a forma e a cor,
entregando-se a suposições sobre o que será recheio oculto, espera um pouco
para a surpresa ser mais excelente e só então come com discretas dentadas
saboreantes.
Makarel não. Quando via um bolo avançava com raiva.
Adquiria-o, furioso, e acabava com ele logo ali. Então lambia o beiço,
esfregava as mãos e, satisfeito, ia à procura de outro.
Portanto, nada mais compreensível do que ver Makarel entrar,
já zangado, na pastelaria «Ao Doce da Malásia». Foi logo direito ao balcão
envidraçado e observou o que havia, disposto a tudo.
Viu-o imediatamente. Era redondo, bem grande coberto de
creme amarelado, maligno e quase tão agressivo como Makarel.
Não hesitou
- Este !
Apontava o bolo com o dedo, enquanto olhava imperativamente
o empregado.
O empregado pegou no bolo com a pinça e estendeu-o a
Makarel, com um guardanapo de papel a acompanhar.
Makarel abriu a boca, sorriu na vingança a vir, ergueu o
bolo e avançou a cabeça, com a outra mão por baixo para não sujar o fato.
O bolo saltou-lhe da mão e ficou pousado na mesa, atento.
Makarel teve um sobressalto. Que era aquilo? Resistência?
Atirou uma sapatada velocíssima, na intenção certa de pegar
no bolo.
Qual nada! O bolo, mais veloz ainda, zás, em cima do balcão.
Então Makarel encanzinou-se. A ferocidade recalcada veio-lhe
toda acima. Arreganhou os lábios, com os caninos à vista, em agressão
declarada.
E atirou um murro demolidor ao bolo e ao balcão.
Acertou no balcão e partiu tudo. No bolo, não.
O bolo engrossara, estava de pé junto à porta dos
Cavalheiros, fitando friamente Makarel através do creme cor de creme.
Pessoas levantavam-se, algumas cadeiras caíam, o empregado
rugia entre os restos do balcão.
Makarel avançou para o bolo. Perdera a noção da prudência,
queria comer, matar aquele bolo queria destruir a coisa redonda, mergulhar as
mãos até ao fundo no creme, esfrangalhar, triturar.
O bolo avançou também, determinado, num caminhar maciço.
Enfrentaram-se.
Makarel atirou-se de punhos para a frente e cabeça encolhida
entre os ombros.
As portas rebentaram, deixando os gonzos solitários, a
montra estilhaçou-se e vomitou lampreias de ovos. Lascas de madeira tinham sido
mesas, cadeiras esmagavam-se ao sopro de uma fúria ciclópica.
As pessoas saíam, numa correria de alucinação. Procuravam a
polícia, os bombeiros, o exército, o ministério, a presidência, até mesmo a
NATO pelo telefone.
O primeiro a chegar foi Gumersindo, da charcutaria ao lado,
com a tranca da porta das traseiras.
Deu uns passos temerosos, avançando com cuidado entre o
desastre caótico. Tudo estava calmo, num silêncio e abismo milenário.
Lá ao fundo o bolo abominável sorria, a limpar o creme que
lhe escorria ao de leve entre o açúcar.
Mais ninguém, na pastelaria «Ao Doce da Malásia».
Mário-Henrique Leiria
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